No Meu Lugar é um filme que se define melhor pelo que não quer ser. Não quer ser filme de gênero, nem filme de arte. Não quer ser sociológico, nem político. Não quer ser um filme “representado”, nem experimental, nem linear. Não quer ser óbvio, mas também não quer ser obscuro. É um filme empenhado em fugir de fórmulas e definições. Para isso, cada inflexão dos atores e cada movimento de câmera parece obedecer a uma rigorosa consciência sobre construção do plano e efeito da montagem.
O resultado é a hegemonia do cálculo em detrimento do pathos. Um filme anódino no seu esforço para escapar a qualquer armadilha. Um filme onde até as qualidades parecem conspirar contra: o rigor vira rigidez, a contenção vira frieza, a desdramatização vira esvaziamento.
O fato de seu diretor, Eduardo Valente, ser um dos fundadores das revistas eletrônicas Contracampo e Cinética não transforma necessariamente o filme num manifesto audiovisual da chamada “nova crítica”, da qual ele é um dos expoentes. Mas, inevitavelmente, suscita uma indagação: será esse cinema autopoliciado o que almejam os críticos dessa geração?
Ainda não vi alguns rebentos dessa passagem da crítica ao filme. Na verdade, diversos praticantes da “nova crítica” combinam ações de reflexão com pesquisa, ensino e realização. Felipe Bragança (co-roteirista de No Meu Lugar) fez com Marina Meliande o longa A Fuga da Mulher Gorila, depois de três curtas e vários roteiros. Cléber Eduardo e Ilana Feldman dirigiram os curtas Almas Passantes e Rosa e Benjamim. Luís Alberto Rocha Melo tem no currículo sete docs sobre cinema brasileiro. Daniel Caetano dividiu com uma penca de outros nomes a direção do doc O Mundo de um Filme, sobre a realização de O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade, e o fic Conceição – Autor Bom é Autor Morto, outro candidato a manifesto de um pensamento crítico levado para a película.
Ainda se pode citar os exemplos de dois antigos críticos de O Fluminense: Flávio Cândido (A Terceira Morte de Joaquim Bolívar) e Evaldo Mocarzel, que de jornalista passou ao mais prolífico documentarista do Brasil atual.
Vivemos um momento rico em matéria de trânsitos entre crítica e prática cinematográfica. Alguns nomes já têm certa tradição, como Nelson Hoineff (Alô Alô Teresinha, Caro Francis), Leon Cakoff (Bem-Vindo a São Paulo, Volte Sempre Abbas!) e Kleber Mendonça Filho (o longa Crítico, além de vários curtas premiados). Outros se expõem pela primeira vez com o crédito de direção. Amir Labaki está estreando no longa com o doc 27 Cenas sobre Jorgen Leth. Até eu me aventurei na direção do programa Jurandyr Noronha: Tesouros Quase Perdidos, para o Canal Brasil.
Não sei quantos, como eu, passaram à realização como mera contingência, fazendo mais uma extensão do trabalho de pesquisa e curadoria do que a abertura de uma nova frente na carreira. De qualquer forma, é hora de observar o que se passa no meio. Haverá algo daquele espírito de continuidade que caracterizava esses trânsitos à época da Nouvelle Vague e do Cinema Novo? Os filmes dizem o mesmo que os textos desses autores, ou são expressões desconectadas? O que move os críticos na direção da câmera além das maiores facilidades de produção hoje em dia?
Na contramão desse fluxo, vale citar a recente atividade de Eduardo Escorel como crítico da revista piauí. Não é o mesmo tipo de crônica e reflexões gerais empreendidas eventualmente por Arnaldo Jabor e Cacá Diegues, por exemplo. Nem tampouco os ensaios que o próprio Escorel reuniu no livro Adivinhadores de Água. Na piauí, o austero realizador tem dado asas a uma veia crítica pontual e aguda, procurando interferir no momento mesmo em que os filmes estão sendo lançados. Seu “fogo amigo” contra Moscou repercutiu como uma bomba. Na última edição, ele investe contra as entrevistas como “panaceia do documentário brasileiro”, mesmo tendo ele próprio baseado em entrevistas o seu último filme, O Tempo e o Lugar.
Críticos e cineastas, enfim, podem estar fazendo um novo capítulo na história da cultura cinematográfica no Brasil. Ou apenas uma grande confusão de lugares.
“No Meu Lugar” até prendeu minha atenção para me deixar com a sensação de grande decepção: tudo aquilo para isso? A forma atende aos preceitos em voga de correção estética, alguns desempenhos são o melhor do filme, nenhum é ruim, alguns atendem a um naturalismo que não é o da Rede Globo; mas a impresão é que o filme e o roteiro não têm o que dizer sobre o que pretenderam. Os três fragmentos de vidas de pessoas que se cruzaram em torno de um incidente trágico, sendo um período de tempo relativo aos antecedentes do incidente, outro imediatamente em seguida e outro anos depois provocam mais ou menos interesse intrínseco com uma articulação dramatúrgica que fica entre o aleatório e o inconseqüente em bora o filme poretenda estabelecer uma realação de “conseqüência” entre as seqüências. A banalidade do assalto não me parecey bem desenvolvida entre os tipos que o executam apesar do ótimo casal de atores; a questão do policial é interessante mas o que tem a ver a relação controladora com sua filha? (de novo ótimos atores) e a família de volta à casa anos depois interessa bem menos, surpreendentemente. Preocupação com a forma, sim. Conteúdo? Parece não ter muito o que dizer.
Oi Carlinhos,
bem, não posso falar pelos outros, só por mim, mas no meu caso o trabalho em filmes de certo modo já era antecedente ao trabalho profissional como crítico. Aí são as vicissitudes, as roubadas em que a gente se mete: em 1999, quando eu comecei a fazer crítica de cinema, o Conceição já estava escrito e parcialmente filmado. Se, olhando agora, fica a impressão de que eu primeiro me dediquei à crítica e depois à realização, na verdade não foi bem assim que aconteceu, não foi uma coisa planejada.
E, sobre essa relação entre as ideias nos textos e os filmes que são feitos, me parece que a gente sempre lembra muito das referências desses dois movimentos de ruptura, a Nouvelle Vague e o Cinema Novo, porque foram muito marcantes, mas na verdade em diversos países e épocas há muitos casos dessa dupla militância. Acho que o ponto mais curioso é pensar em que medida esses filmes de gente com esse percurso são filmes que dialogam (ou seja, pensam de forma crítica) com a tradição e as questões atuais.
Com relação a isso, discordo um pouco acerca do No Meu Lugar. Acho que a amargura do filme é forte o bastante para não concordar com a sua impressão sobre o esmaecimento do pathos. Não me parece que ele peca por frieza, mas certamente é um filme sombrio.
abraços,
Obrigado, Daniel, por suas considerações. De fato, quando mencionei a polivalência de vários profissionais de gerações mais novas que a minha, entre os quais você é um dos que mais respeito, estava implícito que não havia uma cronologia. A realização e a crítica são partes de uma mesma “respiração”, uma mesma atitude de culto e debate em torno do cinema. Sendo assim, nem importa tanto o que veio primeiro, não é verdade?
Quanto ao filme do Valente, insisto em ver ali uma postura bastante artificial, como se fosse mais a aplicação de um ideário (importado de filmes asiáticos, principalmente) que a expressão de um desejo pessoal de cinema. Daí a minha sensação de vazio, de formas que não são geradas por um sentido vindo da vida, mas por um programa estético cerebral. Sei que o filme tem muitos admiradores, mas apenas não me incluo entre eles.
Abraço grande!
Muito interessante essa reflexão do Carlos Alberto sugerindo uma confusão de lugares. Lembro que nem sempre artistas são bons ensaistas sobre obras alheias (e/ou próprias). Henry James desanca com “Madame Bovary”, de Flaubert.
Ainda não pude ir ver “No Meu Lugar”, mas já li vários textos que seriam da “nova crítica”. Nova? Não tenho certeza, parece-me que quase sempre seguem modelos já bem conhecidos e nada novos de publicações estrangeiras.
Muitas vezes os textos são bem escritos, geralmente com ênfase na análise da forma fílmica (quando várias digressões subjetivas podem ganhar ares de verdades objetivas, sem que sejam nem verdades únicas como parecem pretender – apenas inevitáveis impresões e/ou digressões e /ou associações pessoais – e muito menos objetivas, é claro).
Mas de vez em quando arriscam até mesmo questionamentos morais sobre o “conteúdo” de alguns filmes. Talvez quando o filme está sendo questionado. Quando está sendo elogiado não encontro a mesma preocupação supostamente ética. (Que aliás, eu defendo como uma forma de abordagem de filmes ou livros. Para todos os filmes, não apenas para aqueles que se quer questionar ou mesmo condenar.