O colombiano Luís Ospina fez em 1977 um filme arrasador sobre a volúpia dos documentaristas pela miséria do povo. Agarrando Pueblo era o falso making of de um doc, mostrando os critérios e as artimanhas da equipe para filmar sempre o pior, o mais deplorável.
Descontados os exageros de sátira, lembrei-me de Ospina ao ver O Retorno. Rodolfo Nanni, 84 anos, foi ao sertão pernambucano com um parti pris. Queria mostrar que pouco havia mudado desde que ele filmou, em 1958, o doc O Drama das Secas. Naturalmente, apontou sua câmera e o texto de sua narração para sinais que comprovassem a permanência da morte (o filme abre com um enterro), da fome, do acesso difícil à água e da má distribuição de oportunidades no semi-árido nordestino.
Para seu filme-tese não serviam informações como a queda na taxa de mortalidade, o aumento na renda disponível, os ganhos de consumo e a redução de desigualdades no Nordeste dos últimos anos, coisas que os dados estatísticos e uma visão menos “seletiva” podem comprovar. Nanni dá preferência a famílias enormes, velhinhos simpáticos que ainda dão duro na roça, gente que se apega com unhas e dentes à terra onde nasceu e se criou. Com uma trilha sonora ora compassiva, ora épica, o filme complementa seu olhar quase piedoso sobre uma realidade “difícil de mudar”.
O título do filme diz respeito ao retorno do próprio Nanni ao sertão onde filmou O Drama das Secas. E também ao seu retorno ao cinema, do qual estava afastado há 30 anos, a não ser por alguns docs em vídeo na década de 1990. Artista da classe média paulistana, cujo pai foi um pequeno lavrador na Itália antes de rumar para o Brasil, Nanni flertou com o comunismo na mocidade (confira no livro Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente, de Neusa Barbosa, para a Coleção Aplauso). Nunca tinha ido ao Nordeste quando Josué de Castro – autor de Geopolítica da Fome – o indicou para dirigir a parte brasileira de um grande projeto documental sobre a fome no mundo, idealizado por Roberto Rossellini e Cesare Zavattini. O próprio Castro apresentou e narrou o filme, que ganhou prêmios no Brasil e rodou pela Europa. O projeto maior, contudo, nunca se concretizou.
As poucas imagens que ainda existem de O Drama das Secas pontuam O Retorno sem formar propriamente uma ponte entre presente e passado. O filme de 1958 era dominado pela imagem dos retirantes famintos à beira das estradas, figuras hoje inexistentes. O melhor momento dessa reminiscência fílmica é uma sequência de manifestação de trabalhadores em Icó (CE), vista hoje pelo diretor como um possível germe das Ligas Camponesas e do MST. Essas cenas, filmadas de um ponto de vista aéreo, já apontavam a veia retórica de Nanni, retomada agora com o uso aparente de uma grua no meio do sertão.
Não deixa de ser louvável a iniciativa desse homem avançado em anos, disposto a pegar na enxada do cinema em projeto cheio de boas intenções. Mas o potencial de O Retorno se dilui muito numa estrutura antiquada de painel e diagnóstico, que passa superficialmente por diversos temas e se fixa apenas em afirmações genéricas. Quando o entrevistador se deixa encantar por um ou outro personagem (à moda de Eduardo Coutinho em O Fim e o Princípio) é que o filme desce do parlatório para chegar mais perto de nós.
O Nordeste real de hoje, que é também da agricultura familiar, do Bolsa Família e dos micro-empreendedores, escapa aqui e ali ao projeto um tanto populista do filme. Aparece nas frestas, através das palavras de alívio em relação a agruras do passado, ou de uma consciência mais apurada da importância da educação formal. O arrazoado de Rodolfo Nanni conclui com uma nota, mais universalista, de caráter ecológico. E uma inquirição sobre o futuro das crianças de hoje, que, ao contrário do que ele diz, e sem qualquer ufanismo, tende a ser mais auspicioso que o encontrado por seus pais. Se o filme arrisca prognósticos, por que o crítico não pode arriscar também?