Quadros do exílio

Reproduzo texto do crítico Ricardo Cota sobre documentário apresentado no Festival de Berlim

fifi

Exibido na mostra Panorama Dokumente, dedicada exclusivamente a documentários inéditos, Fifi Howls From Happiness, da iraniana Mitra Farahani, é um dos candidatos mais fortes ao prêmio do júri popular na categoria. Apoiado numa entrevista com o celebrado artista plástico Bahman Mohasses, que obteve fama no regime do Xá, “Fifi” surpreende por fugir às características dos documentários formais sobre personagens ao estabelecer entre diretora e entrevistado uma relação calcada na simpatia e no respeito (mais dela do que dele), que descamba para a metalinguagem, resultando num filme feito praticamente a quatro mãos.

Mitra, de 37 anos, já é veterana em Berlim. Em 2002 ganhou o Teddy Bear (prêmio dado a filmes de temática gay) com Juste Une Femme. Em 2004 exibiu Tabous – Zohre & Manouchehr. Depois de passar um tempo detida pelo governo iraniano, em 2009, Mitra, que também é artista plástica, conseguiu escapar e decidiu partir ao encontro de Bahman Mohasses para documentar sua história. O encontro se dá num pequeno hotel da Itália, onde o pintor, escultor e poeta vive seu exílio.

A princípio Mitra deixa Bahman à vontade. Tão à vontade que passa a aceitar suas sugestões de como o filme deve ser editado. Individualista convicto, contrário a todas as estruturas, inclusive a democracia, Bahman desenrola ao longo dos encontros sua filosofia própria, abordando temas como arte, homossexualismo e imortalidade. Seu gesto mais polêmico foi, ao sair do Irã, destruir grande parte de suas obras, rasgando telas e quebrando esculturas. “Arte é como a vida, e a vida não é eterna”, resume. Ao longo do filme, no entanto, o espectador percebe que o gesto de Bahman pode ser também uma reação a que sua obra fosse destruída por regimes ditatorais. No fundo, seu manifesto aparentemente egoísta reduz: “Se é para destruir, que seja por minhas mãos”.

O respeito da cineasta pelo mestre faz com que as ideias que ele propõe para o andamento do documentário sejam adotadas por ela na própria tela. Bahman sugere o filme em capítulos e diz como eles devem começar. Também indica as músicas que devem servir de trilha. Sua relação com a cineasta é tudo menos passiva. Em determinado momento, diante da obsessão de Mitra de filmar tudo, Bahman envenena: “Menina, se você tivesse nascido no comunismo ia receber uma medalha de honra ao realismo-socialista”. Mitra releva com grandeza e acompanha os hábitos de Bahman de fumar incessantemente, de rir das próprias piadas, de zombar da igreja católica e citar quase religiosamente trechos da versão cinematográfica de “O Leopardo”, dirigida por Luchino Visconti.

O mais emocionante fica para o o final, já depois da morte de Bahman, quando ouvimos em “off” a voz do artista “ditando” a última cena enquanto, na tela, Mitra a constrói, incluindo apenas um delicado toque viscontiano. A imagem desdiz sutilmente as afirmações peremptórias de Bahman Mohasses de que a imortalidade é uma ilusão. Ponto para a diretora, que encara o documentário não apenas como registro, mas como estrutura criativa de narração.

Ricardo Cota

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