Três mostras que começam esta semana no Rio e em São Paulo trazem um total de 42 longas e médias e sete curtas procedentes de Portugal, Irã e diversos países africanos. Se somarmos os mais de 70 filmes da Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, são quase 120 títulos rodando no circuito não comercial.
Na Caixa Cultural do Rio, a partir de terça-feira, a Mostra Mohammad Rasoulof e Jafar Panahi: Cineastas Iranianos paga tributo aos dois realizadores perseguidos e presos pelo governo de Mahmoud Ahmadinejad. De Panahi passarão vários filmes já exibidos no Brasil e também o seu recente Isto Não é um Filme, rodado clandestinamente dentro de sua prisão domiciliar. Mais atenção ainda chamam os cinco filmes de Rasoulof, praticamente desconhecido por aqui. A julgar pelas sinopses, seus temas são frontalmente politizados. A programação inclui ainda o poderoso documentário A Onda Verde (foto acima), sobre a resisitência dos jovens “verdes” e das redes sociais às fraudes das eleições iranianas de 2009 (leia resenha).
Na quinta-feira, às 19h, haverá o debate “Cinema e autoridade estatal, realidade e interditos: como filmar o Irã?”, com Alessandra Meleiro, autora do livro O Novo Cinema Iraniano: arte e intervenção social, o pesquisador Hernani Heffner e mediação da curadora da mostra, Tatiana Monassa. Veja a programação completa aqui.
No Instituto Moreira Salles, sexta-feira (e já na terça na Caixa Cultural de Recife) começa a 2ª Mostra de Cinema Português Contemporâneo. Carolina Dias e José Barahona selecionaram produções de 2000 a 2011, período em que os filmes lusitanos se transformaram em novo xodó da cinefilia internacional. Enquanto não chega às telas do circuito o saboroso Tabu, a mostra traz um filme de Miguel Gomes anterior mesmo a Aquele Querido Mês de Agosto: a comédia indefinível A Cara que Mereces, insólita e onírica versão da Branca de Neve com um professor do ensino fundamental no centro da história. Outra Branca de Neve é a de João César Monteiro, também incluída na programação, que passa em São Paulo em julho.
Atração imperdível é também o documentário A Nossa Forma de Vida, observação minuciosa do cotidiano de um casal idoso encerrado numa torre de vidro na cidade do Porto. O diretor Pedro Filipe Marques usou bem sua relação especial com o Sr. Armando e D. Maria para compor o perfil, entre terno e hilariante, de um casal que, mesmo em seu isolamento, não deixa de receber os reflexos de um país em crise. Eles vivem uma vida plugada no noticiário dos jornais, nas atrações da TV e nos comentários sobre a vizinhança vista da janela. Conversam um com o outro e em paralelo, como Fabiano e Sinhá Vitória em Vidas Secas. Sr. Armando tem nostalgia do comunismo soviético, D. Maria duvida que ainda se possa fazer alguma coisa por Portugal. Há tempos eu não via um retrato tão expressivo da proverbial estagnação portuguesa.
Pedro Filipe Marques e João Botelho são esperados no Rio para um debate no dia 30. O veterano e atrevido Botelho vem com Filme do Desassossego, adaptação até certo ponto ousada do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, assinado pelo seu heterônimo Bernardo Soares. O falso autor é também um personagem, um suposto guarda-livros que gosta de inventar sonhos e criar teorias sobre eles. O filme embarca nas entrelinhas da ficção e de uma suposta realidade lisboeta, projeto de pura invenção. O ator principal é coxo. A bela Catarina Wallenstein sidera o espectador numa performance da “Educadora Sentimental”, um plano único com a lente se aproximando vagarosamente de sua boca indescritível. A montagem de João Braz procura articular os vários níveis narrativos, que incluem declamação, instalações visuais, delírios dos personagens. Não é de fácil digestão, mas tem seu pedigree nas artes de ponta lusitanas de ontem e de hoje.
A programação completa da mostra pode ser vista aqui. Haverá também uma homenagem ao realizador Fernando Lopes, morto no ano passado. Entre os cinco filmes dele a serem exibidos, conheço bem o memorável documentário Belarmino (1964), sobre uma espécie de Garrincha do boxe lusitano (foto à direita). É uma peça de raro frescor, que ecoava as liberdades do cinema documental dos anos 1960 e do Cinema Novo português. Tanto o personagem como a trilha jazzística são inesquecíveis.
Programada somente na Caixa Cultural de São Paulo, a segunda edição da Mostra África Hoje apresenta documentários de 18 países, escolhidos pela curadora Luciana Hees (programação aqui). Alguns já estão sendo exibidos na mostra homônima do Canal Brasil e, para quem não viu, é hora de aproveitar a oportunidade. É o caso de Tarrafal, Memórias do Campo da Morte Lenta (leia resenha) e dois filmes da premiada diretora inglesa Kim Longinotto sobre a condição das mulheres africanas, Rough Aunties e O Dia que Eu Nunca Esquecerei (leia mais aqui).
Dois outros filmes se destacam entre os que não estão passando na TV. Benda Bilili!, de Renaud Barret e Florent de La Tullaye, é um projeto no gênero de Buena Vista Social Club ou A Pessoa é para o que Nasce, feito por franceses com músicos paraplégicos e meninos de rua de Kinshasa, capital do Congo. Num espaço de cinco anos, testemunhamos a “descoberta” da banda liderada pelo vibrante Papa Ricky e o desabrochar do pequeno músico Roger Landu, com seu instrumento de corda única feito numa lata de leite vazia. A narrativa segue o modelo da success story até o lançamento do primeiro CD e a consagração da Staff Benda Bilili em shows na Europa. Hoje leio que a banda se dissolveu por conflitos de gerenciamento, mas sua pequena história, como contada no filme, é um desses milagres da indústria cultural que vale a pena conhecer.
Um dos melhores docs que vi ultimamente é A Virgem, os Cristãos e Eu, de Namir Abdel Messeh, jovem diretor francês de origem egípcia. Namir parte para o Egito a fim de investigar diversas histórias de aparições da Virgem Maria em diferentes regiões do país. De família cristã copta, minoria no Egito predominantemente muçulmano, ele penetra nas mitologias e na rivalidade mal disfarçada entre os fiéis das duas religiões. Dificuldades com a produção (registradas no filme) o levam a reinventá-lo. Decide então improvisar a encenação e filmagem de mais uma daquelas aparições com a ajuda dos parentes de sua mãe numa pequena cidade do interior. É quando se instala um misto de documentário familiar e fantasia neorrealista. O mito é virado do avesso pelo aparato do cinema, fazendo com que um humor muito especial aflore do fascínio daquela gente simples pela ideia de um milagre. Uma maravilha, simplesmente.
Por fim, também em São Paulo, em seis salas com entrada franca, abre quinta-feira a 2ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, com uma maratona de mais de 70 filmes, entre longas, médias e curtas. A programação (veja aqui) se divide em temas como Água, Contaminação, Cidades, Economia, Mobilização, etc, e inclui tanto filmes recentes como clássicos do naipe de Dersu Uzala, de Kurosawa, Fata Morgana, de Herzog, e dois filmes de Joris Ivens sobre o vento. O mestre brasileiro Aloysio Raulino, desaparecido há poucas semanas, será lembrado com a exibição de três curtas seminais: Lacrimosa, Porto de Santos e O Tigre e a Gazela. Sobre eles, mais particularmente sobre o trabalho de som, Luís Alberto Rocha Melo publicou recentemente este artigo na revista Filme Cultura.