História e histórias

Na primeira cena de GETÚLIO, o presidente faz um resumo da sua história na primeira pessoa, em que reconhece que foi um ditador, mas não se arrepende. Em outros momentos, o filme identifica personagens com letreiros, à maneira dos documentários. As cenas se sucedem como informações que precisam chegar aos olhos e ouvidos do espectador para que ele entenda o que aconteceu. Mais que uma dramatização dos últimos dias de Gegê, estamos diante de uma encenação dos anais palacianos. Esse é o limite do filme de João Jardim, que resulta um tanto burocrático e solene, naquele tom de quem sabe que o que está falando é “histórico”. Senti também uma certa dificuldade do roteiro para “chegar perto” da consciência de Getúlio e do processo mental que o levou ao suicídio. Os pesadelos de detenção, os ecos do gabinete e os silêncios da intimidade tentam preencher essa lacuna, mas me pareceram insuficientes. De resto, é uma produção competente e tecnicamente bem resolvida, com boas atuações e uma trilha sonora encorpada que tenta colorir o filme com os tons de thriller político. A fotografia (de Walter Carvalho) é feliz na sugestão do clima sombrio e pesado daqueles dias. Dias, aliás, que, guardadas as proporções de época, ressoam na atualidade, quando forças da oposição, dos quartéis e da imprensa ensaiam uma conspiração branca contra o governo sob a bandeira da moralidade pública. A História não aprende consigo mesma, mas ensina.

Pode-se dizer que John Turturro e Woody Allen dividem não só a receita da gigolagem em AMANTE A DOMICÍLIO, mas também a inspiração que gerou essa mui simpática comédia. De um lado, Turturro responde pelo jeito cool do seu personagem e pela forma despretensiosa, quase modesta, como narra e dirige seu filme. De outro, Allen parece responsável pela condução típica do seu personagem e, provavelmente, por algumas gags verbais – além de talvez ter influenciado a opção por uma trilha sonora cheia de jazz e canções nostálgicas. Quanto à ambientação e às piadas de judeu, é difícil saber a autoria, já que Turturro, embora não seja semita, já fez algumas das melhores interpretações de judeus do cinema americano, como em “Barton Fink” e “Quiz Show: A Verdade dos Bastidores”. Aqui ele pisca um olho para isso quando seu personagem, questionado se é mesmo judeu, responde “Não sei”. O filme é uma mistura amável de humor medianamente picante e romance com pouco açúcar. Há lugar para citações a “A Primeira Noite de um Homem”, “Casablanca”, “Manhattan” e outros clássicos que cinéfilos atentos podem detectar. O ritmo vacila aqui e ali, algumas tiradas ficam soltas, mas a capacidade de recuperação é tão imediata quanto a libido de um profissional do sexo. A química criativa e cênica entre Turturro e Allen mereceria um follow up ainda mais caprichado.

Em 2005, Ermanno Olmi, Abbas Kiarostami e Ken Loach (que trio!) se juntaram para fazer o longa TICKETS. Tendo em comum o cenário de um trem que se desloca de Innsbruck a Roma, cada diretor deixou a marca de seu estilo no respectivo episódio. Olmi narrou o devaneio romântico de um velho professor com a moça encarregada de organizar sua viagem. É terno, evocativo e melancólico como em geral são os filmes de Olmi. Kiarostami mostrou uma viúva de general em conflito com passageiros e com um jovem acompanhante. Usou o dispositivo básico do seu cinema: as discussões intermináveis, as relações não muito definidas e os caminhos que não se encontram. Já Loach combinou humor e consciência social na figura de três jovens torcedores escoceses a caminho de um jogo de futebol que precisam se virar para não serem detidos por falta de passagem. O que liga os três episódios são o coletor de tickets e uma família de refugiados albaneses. Por aí o filme toca de raspão em questões europeias contemporâneas, mas sem que isso assuma importância fundamental. O que se impõe é a maneira de cada diretor construir seus personagens em trânsito entre a realidade e a fantasia, a carência e o orgulho, o presente e o passado. Essa é a viagem. O trem é uma metáfora em movimento.

STORIES WE TELL, da atriz/diretora Sarah Polley (“Longe Dela”, “Entre o Amor e a Paixão”), foi incensado há dois anos como um documentário inovador e questionador. Vi ontem o filme, gostei, mas não concordo que mereça tanta louvação. Sarah se dispõe a contar a história de sua mãe, uma mulher cheia de vida, atriz de carreira intermitente e que morreu jovem, em 1990. Daí prossegue para relembrar, junto aos irmãos e ao pai, também ator, a descoberta de uma verdade escondida na família. A mãe era uma mulher de segredos, muitos diziam. Eis que, em dado momento de sua vida, Sarah finalmente descobriu quem era seu pai biológico. No filme, ela interroga (literalmente) os familiares sobre os ecos daquela descoberta e explora uma disputa pela recriação literária do episódio entre as duas figuras paternas. É permanente a intenção de evidenciar como é complexa a tarefa de apurar a verdade e contar uma história. Talvez haja um pouco de teoria e metalinguagem demais para uma trama até certo ponto comum. Sarah se coloca como investigadora e, estranhamente, não participa com seu ponto de vista. Conta, afinal, sua própria história como se fosse mera ouvinte e aquilo, afinal, não lhe dissesse respeito. O uso de recriações de época em Super 8 com atores chega a um ponto limítrofe, que deixo para futuros espectadores perceberem. Ok, estamos numa família de atores, e um dos irmãos de Sarah, entrevistado no filme, é conhecido diretor de elenco no Canadá e foi responsável por esse trabalho no filme. Para mim, essa névoa de indeterminação entre encenação e realidade se presta não tanto a esclarecer ou provocar reflexão, mas a criar névoa somente. Como um conto de família, “Stories We Tell” tem certo apelo emocional. Como narrativa documental, tem camadas interessantes, principalmente na figura de Michael Polley, o pseudopai narrador. Mas como peça de ruptura no âmbito da linguagem, não vejo originalidade que justifique a fama. 

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