Jogos de cena de Jia Zhang-Ke

Zhao Tao em "24 City"

Zhao Tao em “24 City”

Recentemente, em torno da virada do ano, dediquei-me a ver ou rever a obra quase completa de Jia Zhang-Ke enquanto lia o livro O Mundo de Jia Zhangke, organizado por Walter Salles, e aguardava o documentário que Salles realizou sobre o cineasta chinês. Foi uma imersão deliciosa nas ressonâncias internas e externas de uma obra bastante coesa e quase sempre brilhante. Ainda complementei o processo com a leitura do belíssimo catálogo organizado por Jo Sefarty e Mariana Kaufman para a mostra que havia perdido em junho do ano passado.

Entre as muitas considerações que essa visão de conjunto me propiciou, quero destacar as ricas relações entre documentário e ficção na filmografia de Jia. Ao que percebi, elas se dão em três frentes: os lugares, as pessoas e os procedimentos.

  1. Lugares

Shanxi, a província natal do diretor, é um locus de origem do seu cinema. Dali partem ou para lá retornam diversos personagens, como exemplo dos fluxos de migração interna que caracterizam a nova China. As paisagens rudes das cidades de Fenyang e Datong ambientam os seus primeiros filmes e fornecem uma forte ligação telúrica, que ao mesmo tempo é uma poderosa âncora documental para as ações dos personagens ficcionais.

Wang Hongwei em "Xiao Wu"

Wang Hongwei em “Xiao Wu”

Os cenários reais, com base numa intensa e refinada pesquisa de locações, participam da dramatização tanto quanto as figuras humanas. Afinal, nessa primeira fase de sua obra, Jia pensa as transformações da era comunocapitalista sem utilizar nenhuma retórica informativa ou argumentativa. É através dos vínculos entre pessoas e cidades que ele examina os deslocamentos, a perda de identidade e de conexões entre vida e trabalho, a substituição do realismo socialista pela cultura pop e a desmaterialização do cotidiano hard da era maoísta em troca da tecnologia soft globalizada.

Xiao Wu e Plataforma, os dois primeiros longas, tematizam a demolição dos velhos hutongs (bairros populares), a decadência dos pequenos ladrões e a patética tentativa de modernização dos artistas de rua de Fenyang, assim como o documentário Inútil expõe o ocaso dos seus pequenos alfaiates. A imensa fábrica de Chengdu, em vias de dar lugar a um modernoso projeto habitacional de luxo em 24 City, é outro exemplo de filme-locação, no qual a realidade documental é indissociável da experiência narrativa empreendida pelo cineasta. Já no consagrado Em Busca da Vida, é na gigantesca paisagem em mutação da região de Fengjie que Jia Zhang-Ke imerge seus personagens representativos do êxodo ocasionado pela construção da represa das Três Gargantas. Some-se a isso a metrópole que tem seu passado devassado no doc Memórias de Xangai.

Por mais que Jia ficcionalize e até flerte com o surrealismo – como nas cenas de disco e edifício voadores de Em Busca da Vida; por mais que ele confunda verdade com encenação – como nos depoimentos de 24 City -, as cidades, galpões industriais, ruínas e canteiros de obras conferem a todos os seus filmes um substrato documental incontornável, uma espécie de ímã que atrai toda invenção para o leito da realidade. Não uma realidade arquivada e datada, mas em estado de processo e metamorfose.

  1. Pessoas

Han Saniming em "Em  Busca da Vida"

Han Sanming em “Em Busca da Vida”

Jia Zhang-Ke trabalhou prioritariamente com atores não profissionais em seus primeiros filmes, seguindo um método próximo do neorrealismo italiano. Muitos operários, artesãos e seus familiares em Xiao Wu, Plataforma, Prazeres Desconhecidos e Em Busca da Vida representavam a si mesmos diante da câmera, influenciando com seu jeito de ser a maneira pela qual o diretor ia organizando suas cenas. Isso, naturalmente, contaminava os filmes com os modos naturais e espontâneos das pessoas.

Além disso, Jia mantém, desde o início da carreira, um vínculo regular e estreito com sua equipe e seus atores mais frequentes. A atriz Zhao Tao, hoje casada com o diretor, era uma bailarina que ele descobriu quando filmava Plataforma em Shanxi. Ela passou a atuar em todos os seus filmes de ficção, e até em dois documentários. Por ter trabalhado antes num parque temático em Pequim, ela forneceu várias histórias que inspirariam o roteiro de O Mundo. Outro que aparece frequentemente nos filmes de Jia é Wang Hongwei, protagonista de Xiao Wu e Plataforma. Ele era um colega na Academia de Cinema de Pequim, que Jia resolveu improvisar em ator para o papel-título do batedor de carteiras de Xiao Wu.

Mas o melhor fio terra pessoal de Jia Zhang-Ke é o seu primo Han Sanming, um humilde mineiro de Fenyang que fez o seu próprio papel em Plataforma. Desde então, Sanming reaparece, sempre com o seu nome e em status social semelhante, em diversas circunstâncias. Como um mineiro de Fenyang, vai a Pequim receber a indenização pela morte de um operário de sua família em O Mundo e vai a Fengjie procurar a mulher que o abandonara muitos anos antes em Em Busca da Vida; como um operário-imigrante, participa de Um Toque de Pecado e do documentário Dong (neste, como modelo para o pintor Liu Xiaodong).

joan chenA confusão entre pessoa real e personagem ficcional se intensifica com o papel da atriz Joan Chen (foto à esquerda) no mix fic-doc 24 City. Ela vive uma operária cuja beleza valeu-lhe o título de “Flor da Fábrica”, e que todos comparavam com a famosa estrela Joan Chen. Após a conclusão do seu depoimento, vemos numa TV um trecho do filme Pequena Flor, de 1980, em que uma jovem Joan vivia o papel que a consagrou na China. Com esse curto-circuito entre duas camadas ficcionais de uma mesma atriz, encaixado dentro de um documentário mais ou menos formal, Jia rompe a cortina entre representação e realidade tal como Eduardo Coutinho havia feito em Jogo de Cena no ano anterior.

  1. Procedimentos

Zhao Tao em "Memórias de Xangai"

Zhao Tao em “Memórias de Xangai”

No âmbito da linguagem dos filmes, a fusão de ficção e documentário se dá através de diversos procedimentos, tais como inspiração, espelhamentos e interpenetrações.

Um exemplo sutil ocorre já na última sequência do seu primeiro longa, Xiao Wu, quando o punguista é detido e algemado a um cabo de aço no meio da rua enquanto o policial se afasta temporariamente. Jia Zhang-Ke filmou a cena sem qualquer isolamento e deixou que os passantes se juntassem para contemplar o homem preso. Esse recurso, já tradicional em filmes realistas, era uma das marcas de Iracema, uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna. A ficção absorve e se beneficia da reação natural das pessoas.

Jia - Dong e Em busca da vidaEm Busca da Vida faz esse tipo de passagem quase imperceptível entre os trabalhos de demolição de velhos prédios na área das Três Gargantas e a deambulação de seus personagens. O argumento de Em Busca da Vida surgiu justamente enquanto Jia realizava o documentário Dong naquela região, acompanhando Liu Xiaodong no ato de pintar operários. A intimidade entre os dois filmes é tamanha que ambos compartilham não apenas a locação, mas também eventos (a morte acidental de um operário), enquadramentos e mesmo algumas tomadas inteiras (como a queda de uma parede simultaneamente à passagem de Han Sanming, presente nos dois filmes – foto acima).

Antes disso, Jia havia escrito Prazeres Desconhecidos a partir da experiência de filmar o documentário In Public na sombria paisagem industrial de Datong. Diversos personagens são inspirados em figuras filmadas ao acaso no doc, para as quais o diretor imaginou uma história. Locações e enquadramentos são também comuns a ambos os filmes.

Por sua vez, 24 City explora o jogo de cena entre depoimentos reais e ficcionais. Em meio a velhos operários nostálgicos da vida regida pela fábrica e descendentes já alheios a esses sentimentos, o filme insere quatro atores para representar depoimentos mais longos, narrativos e possivelmente inventados. A ideia, portanto, não é confrontar ou embaralhar relato “autêntico” e encenação de palavras alheias, como no filme de Coutinho, mas adensar a paisagem humana que Jia pretende fornecer de mais aquela mutação no espírito da China contemporânea. As participações de Joan Chen, citada acima, e Zhao Tao (esta no papel de uma jovem comerciante que aspira instalar os pais num dos prédios novos da tal 24 City) tornam patente o desejo de colocar a ficção a serviço do documentário sem no entanto diluir as diferenças entre os dois registros.

Função semelhante tem a personagem de Zhao Tao em Memórias de Xangai. Ela atua como uma mulher sem nome nem identidade definida, uma espécie de fantasma que apenas caminha pelos canteiros de obras e pontos de fuga da paisagem de Xangai. Essa estranha personagem não guarda nenhuma relação com as entrevistas que evocam o passado efusivo e gangsteresco da cidade. Daí constituir talvez o ingrediente mais supérfluo da complexa receita que Jia aprimorou ao longo de sua carreira. Mais delicada e orgânica, naquele filme, é a menção a Wong Kar-Wai na introdução do bloco Hong Kong, quando Zhao Tao cruza com um homem elegante, em cena que parece retirada de Amor à Flor da Pele (foto desse parágrafo).

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