Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa, passa hoje na mostra competitiva ibero-americana do Cine Ceará. Eu vi o filme no último Festival do Rio.
Um sonho, uma alucinação, uma fantasmagoria de imaginação enferma… Não há como definir Cavalo Dinheiro fora da esfera da irrealidade. E no entanto o filme se refere todo o tempo à imigração, à herança colonial, à Revolução dos Cravos, ao desemprego, ao sucateamento da indústria portuguesa. Pedro Costa mira o real com a luneta do onírico.
Pela quarta vez, ele se vale do ator-personagem Ventura, o imigrante cabo-verdiano que protagonizou Juventude em Marcha e três segmentos do diretor em filmes de episódios. Ventura, com sua forma peculiar de falar e se mover em cena, atende ao desejo de Pedro Costa de trabalhar à margem da dramaturgia naturalista, expressando-se quase sempre através de tableaux vivos, com atores semi-estáticos entre feixes de luz e sombra. A proporção da tela aqui é quadrada, opção de todo realizador chique atualmente.
Em Cavalo Dinheiro, Ventura está velho, com mal de Parkinson e hospitalizado não se sabe há quanto tempo. O tempo, aliás, é um dispositivo móvel no qual Ventura se desloca sem mudar de figura entre 1974 e 2013. Ele se refere à época da Revolução de Abril como se fosse hoje, quando foi preso e teve desfeito seu projeto de casamento com a conterrânea Zulmira. No hospital, recebe visitas que soam como ecos do seu passado. Em suas deambulações – imaginárias ou não – ele passa por oficinas e fábricas arruinadas, povoando como um espectro o mundo do trabalho que o teria expulsado como a tantos operários e imigrantes na crise que abala Portugal. Uma sequência especialmente longa transcorre dentro de um elevador, onde Ventura troca impressões com um soldado-estátua imobilizado, como ele, desde 1974.
Tudo é pictoricamente lindo, embora monótono e sonambúlico. Para apreciar essa estranha forma de beleza é preciso deixar de lado as expectativas de narratividade e embarcar no fluxo de ressonâncias, cantos tristes e ruminações que juntam o passado e o presente num palimpsesto audiovisual.
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