Cinzas colombianas, demolição carioca, calor baiano

O cinema colombiano é o novo darling latino-americano. “O Abraço da Serpente”, com lançamento no Brasil previsto para janeiro, é o único representante do continente na shortlist do Oscar de filme estrangeiro, divulgada hoje. A TERRA E A SOMBRA, já em cartaz, ganhou quatro prêmios em Cannes e tem sido celebrado em festivais. A mim, pareceu um filme talhado para o olhar paternalizante de festivais do Primeiro Mundo. Com um inegável senso de composição estética, César Augusto Acevedo descreve a vida difícil e triste de uma família camponesa em meio à insalubridade dos canaviais em chamas e à impiedade de patrões exploradores. Já na primeira cena, um caminhão joga nas lentes uma densa nuvem de poeira, fazendo-nos virtualmente partícipes do sofrimento dos locais. A miséria e a impotência dos pobres camponeses só é mitigada pelo afeto que se possa resgatar dentro da família, a solidariedade entre os bóias-frias e a inocência da criança. Assim também, a criação de algumas cenas líricas ou comoventes faz contraponto à encenação dura, solenemente lenta e cheia de longos silêncios. Minha impressão foi a de que já vi esse filme nos tempos de vitimização da América Latina. A participação brasileira na coprodução compreendeu o trabalho de Fátima Toledo na preparação do elenco não profissional (somente a mãe do menino era atriz).


Dos tantos filmes que já vi, realizados no marco dos 450 anos do Rio, CRÔNICA DA DEMOLIÇÃO é o mais bem resolvido no tratamento do seu tema. A partir do dado prosaico sobre o destino dos leões que guarneciam a fachada do Palácio Monroe, Eduardo Ades refaz a história da construção e da demolição do prédio, usando-o como mote para um debate sobre os modelos de modernização urbana adotados no Rio ao longo do século XX. O assunto é objeto de comentários principalmente de arquitetos e urbanistas, sempre à luz da pergunta: por que se pôs abaixo aquela joia da arquitetura eclética? As respostas apontam geralmente para a sanha renovadora dos modernistas. À frente, Lúcio Costa, para quem o Monroe não tinha valor arquitetônico – um monstrengo, um trambolho, segundo seus críticos. Mas o filme descortina também as ligações entre o governo militar, os construtores do metrô, a campanha do jornal O Globo e os interesses da especulação imobiliária, que se uniram, sob a bandeira do progresso, para decretar, em lugar do tombamento, a demolição. Esse documentário é um pequeno curso de crítica de arquitetura e ao mesmo tempo um passeio deslumbrante pela história do Rio moderno. Com uma primorosa pesquisa iconográfica de Remier Lion, tomadas grandiosas da cidade atual e trilha sonora de Philip Glass e Villa-Lobos, o documentário deleita olhos e ouvidos. Mas sua maior virtude está na estruturação da crônica, na interação ora patente, ora sutil das imagens com as ideias que vão sendo desenvolvidas. Um filme em que cada cena ganha status de revelação e emoção histórica.


Esqueça “Recife Frio” e se ligue em Salvador quente. TROPYKAOS, de Daniel Lisboa, é a história de um jovem poeta atormentado pela onda de calor que torra a capital baiana num fevereiro qualquer, levando ao aumento da criminalidade e da demanda por refrigeração. Mesmo assim, se isso é motivo de praia, festa e alegria para o baiano típico, para Guilherme é fonte e metáfora de todos os males: a crise criativa, a cobrança dos amigos, a falta de dinheiro para consertar o ar condicionado. O calorão vem de dentro e de fora, estoura em febre e feridas no seu corpo e em buracos na sua mente. Até as estátuas suam e os seres vivos podem entrar em combustão espontânea nessa Salvador sem salvação. O mal-estar de Guilherme é ricamente expresso na profusão de luzes cegantes, closes e sonoridades opressivas (fotografia de Pedro Urano, desenho sonoro de Edson Secco). O ator Gabriel Pardal é um bom trunfo, assim como a presença de Dellani Lima no papel do amigo junkie e de Edgar Navarro em três personagens, um deles de estirpe jodorowskiana. Daniel Lisboa dialoga com a tradição mais criativa do cinema da Bahia, ao mesmo tempo que apresenta uma proposição nova de leitura do espírito da capital. Se algumas sequências caem na tagarelice baiana, outras se impregnam na memória, como a noite dormida na cabine de banco 24 horas, a entrevista do poeta na rádio e todo o desfecho que literalmente incendeia a apoteose do poeta. TROPYKAOS arde bonito na tela.

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