Começa hoje (terça) na Caixa Cultural RJ a Mostra “Imagens da Turquia – O Cinema de Nuri Bilge Ceylan“. Veja a programação completa. Um dos grandes da atualidade, o cineasta turco é legítimo herdeiro do cinema autoral dos anos 1960. Para o catálogo da mostra eu escrevi o seguinte texto a respeito de Três Macacos, filme que apresento hoje na sessão de abertura da mostra, às 19h:
Há razões concretas para Três Macacos ser o filme mais popular de Nuri Bilge Ceylan. É, sem dúvida, o que mais investe numa trama de natureza policial, nisso seguido de longe por Sono de Inverno.
Depois de atropelar uma pessoa numa estrada, um político em campanha propõe ao seu motorista assumir a culpa e a prisão em troca de uma grande soma de dinheiro. O que se segue é o minucioso relato de uma decomposição familiar causada pela ganância, a mentira e a infidelidade conjugal.
As mesmas razões da popularidade de Três Macacos geraram algumas críticas a Ceylan por supostamente abandonar suas até então típicas narrativas de introspecção poética em troca de um argumento mais factual. No meu entender, porém, esse movimento, ao contrário, iluminou ainda mais o talento extraordinário do diretor. Afinal, Três Macacos contraria vários cânones do filme policial e enfatiza o discurso interior dos personagens.
Não vemos, por exemplo, os fatos principais que compõem a história: o atropelamento, a traição, um espancamento, um assassinato. Não ouvimos as razões de Eyüp, Hacer e Ismail, três dos quatro vértices da equação. Eles quase não se expressam oralmente, uma vez que o silêncio e a denegação estão no cerne de tudo. Dessa maneira, Ceylan concatena a narrativa à própria conduta dos personagens, que agem silenciosamente na defesa dos seus desejos e da sua ideia de honra familiar. Não ver, não ouvir, não falar – como os três macacos que simbolizam a alienação dos sentidos.
A fuga ao verbal e à demonstração visual favorece, portanto, um trabalho de extrema habilidade com os olhares, as expressões faciais e a linguagem corporal. Quase todo o filme se resolve em closes intensos, muitas vezes recortando apenas partes dos rostos, como se os sentimentos brotassem das peles suadas no verão de Istambul. Quando sai desse registro para uma tomada distante, produz efeito altamente desestabilizador. Basta ver a dolorosa sequência em que Hacer tenta convencer Servet a não abandoná-la. Nesse estado de suspense permanente, os acontecimentos de rotina ganham uma dimensão às vezes insuportável – seja um ventilador diante de um rosto, seja um celular que toca sua musiquinha romântica nos momentos mais inoportunos.
Em lugar da dialogação incessante que caracteriza muitos filmes turcos, temos aqui o tempo distendido da reflexão. Ceylan sublinha o intervalo existente entre o conhecimento da verdade e sua assimilação. Em algumas conversas, ele desencaixa os tempos de fala para quebrar o consumo “automático” dos filmes de gênero. Usa as elipses não apenas para ocultar o óbvio, mas principalmente para nos sintonizar com a rede de ocultamentos entre os personagens. Ocultamentos que vão causar tanto a danação do núcleo familiar, quanto a sua eventual salvação.
Um dado relativamente exógeno a esse jogo de relações claustrofóbicas é o aparecimento do fantasma do filho mais novo. Aqui, uma porta para o sobrenatural se abre na qualidade de um consolo para os dois homens, e só para eles. Ainda assim, é um pequeno mistério que o filme concilia mais pela parcimônia com que é usado do que pela função que desempenha.
Na escrita soberba desse roteiro, Ceylan, sua mulher Ebru Ceylan e o ator Ercan Kesal (Servet) usaram alguns recursos dramatúrgicos curiosos. Um deles foi associar cada personagem com um meio de transporte ou de comunicação: Servet e o seu carro, Ismail e os trens, Hacer e o celular. Eyüp, o motorista, ironicamente é o que só se desloca a pé. Outro componente silencioso do drama – como de hábito nos filmes do diretor – é a paisagem de Istambul, sobretudo as vistas às margens do Mar de Mármara e do Estreito de Bósforo. O mar representa um ponto de fuga que parece bloqueado para os personagens. Marca um limite de ação, prestando-se somente à contemplação muda.
No triângulo familiar, o filho extraviado assume o lugar do pai enquanto este se encontra na prisão, não somente recolhendo o salário mensal de Eyüp, mas também sofrendo e indignando-se com a conduta secreta da mãe. Esta, por sua vez, pateticamente dá vazão a uma insuspeitada insatisfação conjugal ao mesmo tempo que age para beneficiar o filho. Já Eyüp dilacera sua consciência entre os papéis do marido ferido e do homem religioso que compreende o valor do perdão. Não há lugar para estereótipos em Três Macacos.
Esse quinto longa-metragem de Ceylan lhe rendeu o prêmio de direção no Festival de Cannes de 2008 e foi o primeiro filme turco a entrar na shortlist do Oscar de filme estrangeiro. Provou que o maior poeta da incomunicação no cinema contemporâneo podia ser também um exímio narrador de prosa. Três Macacos passou ainda um recado sobre as estruturas de força, poder e interesse numa sociedade ao mesmo tempo moderna e arcaica como a turca. Eyüp, a vítima proverbial, não hesitará em passar adiante a proposta indecorosa que recebeu do patrão, embora com o objetivo de proteger a família em lugar de um trabalho ou uma carreira. Ismail saberá botar dignidade e extorsão na balança para resolver-se como projeto de homem. Hacer pode ser vista como ícone da condição feminina ainda subjugada a diferentes faces do masculino.
Em todos eles, a intenção de tirar vantagem se choca com a ética pessoal e com o impulso de autopreservação. Assim o filme toma a forma de um conto moral sobre o ocultamento como forma de sobrevivência. Não chega a ser uma singularidade turca como o chá em copinho de tulipa, mas o estilo de Ceylan o torna inconfundível e irresistível.
Leia outros textos meus sobre filmes de Ceylan:
Sono de Inverno
Era uma Vez na Anatólia