Um homem, uma mulher, a vida, a morte

ANTES DO FIM terá pré-estreia hoje (terça, 27) no Estação Net Rio, às 21h35, em homenagem do Cineclube Ação e Reflexão à atriz Helena Ignez. Entra em cartaz na próxima quinta-feira.

Foto: Marina de Almeida Prado

Um homem, uma mulher, a vida, a morte. Não é menos do que tudo o que Cristiano Burlan aborda em ANTES DO FIM pela ótica do essencial. Jean e Helena formam um casal há 58 anos quando ele decide organizar seu suicídio com a ajuda dela. É a mais radical das escolhas, tomada como um gesto de recusa da decadência da velhice e resistência contra a chantagem da “máquina médica” que vampiriza nossa longevidade. Helena, porém, apega-se à vida com um vigor que lhe brota do interior.

Para apreciar esse trabalho ímpar de três criadores inquietos, é preciso considerar as personae de Jean-Claude Bernardet e Helena Ignez, assim como as obsessões autorais de Cristiano Burlan.

Como tem acontecido em suas recentes atuações, Jean-Claude traz para o personagem seu temperamento inconformista, ceticismo e ironia existencial. O crítico e teórico de cinema que, doente e quase cego, reinventou-se como ator e se mantém vivo pela insistência na criação, é um espelho desse Jean que vemos na tela conversar com sua imagem e botar o corpo dramático para dançar seus últimos dias. Helena Ignez, a atriz-autora por excelência e orientalista no espírito, espelha-se igualmente na sua Helena mítica, plena de força vital, da estirpe dos “atores feirantes, eternos errantes”.

Juntos, eles formam uma dupla de raro entendimento cênico. Deitam e rolam nos diálogos improvisados, desafiam mutuamente os respectivos intelectos, trocam caretas, dançam, divertem-se. O prazer de vê-los não tem preço pela estranha química e o evidente carinho recíproco. Os atores Henrique Zanoni e Ana Carolina Marinho fazem uma espécie de alterego jovem dos dois e contribuem com mais uma camada de referências.

Burlan, por sua vez, é um cineasta interessado em estados terminais, que já escalou Bernardet como um sem-teto em Fome, um insone em No Vazio da Noite e o fantasma do pai em Hamlet. Ele está concluindo uma trilogia documental sobre as mortes do seu pai, sua mãe e seu irmão. Em ANTES DO FIM, a morte muda de cara de uma sequência para outra. Ora é tema de discussão filosófica, ora é mote para uma cena de comédia muda, ora é assunto de uma conversa descontraída durante passeio por um cemitério.

A morte talvez esteja, mais que nada, na temperatura das imagens. Uma São Paulo próxima do sobrenatural pulsa por trás dos atores, frequentemente embebidos e quase dissolvidos numa luz desmedida. Tal procedimento chega ao paroxismo na belíssima sequência final em que Jean-Claude faz sua homenagem ao longevo Kazuo Ohno, confundindo-se com a imagem do mestre.

A propósito, vale lembrar a célebre promessa de Kazuo: “O corpo envelhece e morre, mas segue dançando com a Energia do Universo. A morte é um novo começo. E quando eu morrer, vou começar de novo dentro do universo, vou continuar dançando”.

2 comentários sobre “Um homem, uma mulher, a vida, a morte

  1. Adorei essa sua análise. O tema da vida/morte/vida me persegue atualmente por razões pessoais e o seu texto contribuiu não apenas para que eu veja e compreenda o filme, mas para que as minhas preocupações sejam diminuídas com suas sábias palavras. Obrigado, Carlinho!

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