Notas sobre OH, CANADÁ e DAAAAAALÍ!
Dois filmes lançados esta semana giram em torno de entrevistas ficcionais para supostos documentários que não chegam a bom termo. Diferem radicalmente em matéria de gênero e de referências, mas compartilham o mesmo desejo de experimentar com os tempos da narrativa e a caracterização dos personagens. Não gostei de nenhum dos dois. Mas achei curioso que o debochado Daaaaaali! pareça uma sátira do compenetrado Oh, Canadá.
Memórias esburacadas de um homem sem interesse
O encontro de Paul Schrader e Richard Gere em Oh, Canadá é uma trombada de dois astros minguantes. Há cerca de duas décadas, nenhum dos dois teve seu nome ligado a um bom filme. E este agora só faz agravar a situação.
Nas primeiras cenas, um Gere envelhecido artificialmente se coloca frente à câmera para uma entrevista. Seu personagem, Leonard Fife, é um famoso documentarista que, na juventude, fugiu para o Canadá a fim de escapar da guerra do Vietnã. Ganhou reputação de herói pacifista, o que ele decide desmentir nessa entrevista. Exige a presença da mulher (Uma Thurman) diante dele no Interrotrom (equipamento desenvolvido por Errol Morris que permite ao cineasta ficar cara a cara com o entrevistado enquanto este encara a câmera).
Leonard está irascível, destrata a equipe de filmagem, tem as memórias confusas por conta da medicação contra o câncer. Seus relatos esburacados dão margem a uma série de flashbacks em que Schrader experimenta confundir os tempos, a coloração das imagens e ainda a escalação dos atores. Leonard pode aparecer numa mesma sequência de acontecimentos com a cara jovem de Jacob Elordi (um miscast que me pareceu intencional) e o rosto maduro de Gere. Uma Thurman também reaparece como a mulher de um amigo de Leonard. Nada daquilo faz muito sentido, de tão aleatório que é.
Para piorar o imbroglio narrativo, há uma locução em off do filho de Leonard a respeito de um pai que ele mal chegou a conhecer. Um pai mau caráter que atravessou três casamentos sem deixar rastros e foi parar no Canadá quase por acaso. A história desinteressante desse homem é contada sem qualquer brilho, no jeitão pessimista típico de Schrader. Uma citação de Susan Sontag a respeito da imortalidade da imagem fotografada não ajuda a ampliar a permanência desse filme na memória.
Caricatura da caricatura
Se Salvador Dalí já se dispunha a ser uma caricatura de si mesmo, uma caricatura dessa caricatura pode ser coisa indigesta. Quentin Dupieux, diretor francês de nicho, tira da cartola mais uma de suas comédias em torno do fazer cinematográfico. Uma jornalista francesa persiste na tentativa de entrevistar Dalí, tendo para isso que lidar com um contraste gritante entre sua persona comum, quase desinteressante, e a megalomania hipervaidosa do pintor. Ele só aceita dar a entrevista se for para uma câmera de cinema, a maior possível.
Dalí é repartido entre seis atores de diferentes idades, que se entrecruzam à revelia de qualquer lógica. Mas não se trata de surrealismo, e sim de um joguinho pueril com que Dupieux pretende divertir a plateia. Os Dalís se expressam histrionicamente até o ponto de se tornarem simplesmente chatos. Em dado momento, o pintor é visto diante de um modelo de cabeça deformada, numa infeliz materialização de um de seus quadros. A escatologia tampouco fica de fora, com repetidas cenas de gente regurgitando comida.
A possível relação entre surrealismo e sonho é reiterada pelos relatos de um bispo, que por sua vez invadem a “realidade” e se confundem com ela. O documentário-dentro-do-filme ganha a forma das bonecas russas, que saem uma de dentro da outra.
Há quem veja graça em tais expedientes, e há mesmo quem encontre relação entre o anti-humor de Dupieux e as excentricidades comumente associadas a Dalí. Para mim, o filme chegou como uma piada insípida e às vezes de mau gosto.
>> Oh, Canadá e Daaaaaalí! estão nos cinemas.


