Notas sobre os filmes A MELHOR MÃE DO MUNDO e PATERNO
Duas classes sociais muito distintas, duas grandes cidades no pano de fundo, dois personagens em situação de risco, dois filmes de grande acuidade social.
Perfil cativante de uma guerreira das ruas
As imagens de Gal com seus filhos na carroça pelas ruas de São Paulo tem algo de épico. A Melhor Mãe do Mundo caminha num fio tênue entre a crueza do realismo e a romantização da desdita. A “aventura” do trio em fuga do marido abusivo lembra um pouco a fantasia doce-amarga de A Vida é Bela, em que um pai escondia a guerra do filho com o disfarce da fábula.
Em seu terceiro longa sobre mães, depois de Que Horas Ela Volta e Mãe Só Há Uma, Anna Muylaert pinta perfil cativante de uma guerreira das ruas. Shirley Cruz ganha a plateia já na primeira cena, quando Gal faz um B.O. contra o marido que bebia e a maltratava. Dali em diante, ela carrega o público com a intensidade que transfere da mente para o corpo da personagem. É uma das grandes performances femininas do ano.
O filme tem duas parte mais ou menos definidas. Na primeira, prevalece a descrição do “corre” das catadoras de recicláveis. Auxiliada por um casting de primeira e a preparação do elenco infantil por Marcio Mehiel, a diretora instala desde cedo uma interação primorosa no elenco e um naturalismo contagiante. Na segunda parte, findo o road movie da carroça em Itaquera, a história ganha mais corpo dramatúrgico, ainda que preserve a importância da ambientação.
Gal ama o marido, o que só faz problematizar sua situação. Leandro (Seu Jorge), o homem que não sabe pedir desculpas, é mais um entre os caras despóticos ou oportunistas que se opõem às mulheres, sempre solidárias e compreensivas. Uma delas até se vangloria de estar “livre de homens”. Esse recorte um tanto esquemático compromete um pouco a equação armada por Anna Muylaert.
O que prevalece, porém, é a imersão que o filme nos oferece nesse limiar entre a vida na casa e a vida na rua. Com um elogio final à beleza das ocupações populares. A bordo da carroça e da energia de Shirley Cruz, ficamos também com um retrato de mãe tão terno quanto inusitado.
>> A Melhor Mãe do Mundo está nos cinemas.
Uma vida no engarrafamento
Marco Ricca, o ordinary man por excelência do cinema brasileiro, é o ator ideal para viver o arquiteto Sérgio, homem preso no engarrafamento de uma vida irrealizada. Um dos herdeiros da empresa do pai moribundo, com quem já não consegue mais contato, ele é subalternizado pelo irmão mais velho (Nelson Baskerville), que castra seus projetos supostamente inovadores. Vive uma relação conjugal gélida e não tem afinidade com o filho um tanto apático (Gustavo Patriota).
As duas conversas entre Sérgio e o filho, que ajudam a balizar o filme, se passam enquanto estão presos em grandes retenções de trânsito. Situações de impasse que vão se estender a outros estágios do filme.
Paterno é obra sóbria e aguda de Marcelo Lordello, diretor que deu provas de maturidade já em seu primeiro longa de ficção, Eles Voltam, de 2012. Paterno foi feito em 2021, ou seja quase dez anos depois. Lordello volta então a tratar de relações familiares, mas trocando o tratamento poético do primeiro filme por uma linguagem mais crua e cáustica.
Não acho que tenha dado conta de todos os fios narrativos que correm em paralelo nesse novo filme. Ao mesmo tempo que tenta desajeitadamente convencer moradores do bairro popular de Brasília Formosa, em Recife, a vender suas casas para dar lugar a um empreendimento imobiliário, Sérgio lida com o passado sombrio do pai e com sua própria incapacidade de se situar junto à esposa e ao filho. Ele está num limbo pessoal e profissional, do qual o roteiro não aponta saída.
Os vários temas flutuam entre elos dramáticos bastante sutis, alguns até mesmo frágeis demais, como é o caso da trama em torno da herança deixada pelo velho Heitor. De qualquer forma, o filme se impõe, entre outras coisas, pela forma como articula os dramas pessoais com a realidade da especulação imobiliária e da corrupção, aliás já bem explorada pelo cinema pernambucano.
O trabalho do elenco, preparado por Leonardo Lacca, é excepcional e sustenta o interesse mesmo quando a ação avança em banho-maria. No fim das contas, fica uma reflexão bem calibrada sobre a transmissão de ganhos e perdas de uma geração para outra.
>> Paterno está nos cinemas.

