O SEQUESTRO DO PAPA
Para começo de conversa, o Papa Pio IX jamais foi sequestrado. É só mais um título desastroso dos distribuidores brasileiros. Rapito (“Sequestrado”) baseia-se num caso real de 1858, quando os Estados Papais dominavam a Itália, e o Tribunal do Santo Ofício agia com pleno absolutismo. Em Bolonha, o menino Edgardo Mortara é retirado de sua família judia para ser convertido ao Catolicismo. Uma antiga babá afirma tê-lo batizado quando esteve doente, a fim de que sua alma não fosse para o limbo. Era dogma da Igreja que crianças cristãs não podiam ser criadas por famílias judias. O menino é levado à força para desespero de seus pais.
Marco Bellocchio fustiga assim mais uma vergonha histórica da Itália. A segunda metade do século XIX foi agitada pela revolta dos monarquistas contra o poder papal. Pio IX era um pontífice conservador que, no fim da vida, comparou os judeus a cães. Rapito o caracteriza como um homem frio e arrogante, cercado de acólitos que personificam em detalhes o modus operandi da Inquisição: a violência suave com que perseguia seus objetivos até que fosse necessário usar a mão de ferro. Aos judeus restava uma resistência tímida e inglória.
Na batalha pelas almas do povo, os cristãos usavam seu poder para chantagear e obter conversões. Bellocchio cria paralelos interessantes entre rituais simultâneos em uma e outra religiões, deixando claro como todas se equivalem, sem que as disputas fizessem qualquer sentido. No entanto, a eficácia da lavagem cerebral impingida pelos padres ao pequeno e dócil Edgardo terá resultados devastadores para sua identidade – e talvez desconcertantes para o espectador. A violência espiritual será a maior de todas.
O caso Mortara foi um melodrama familiar e um affair político de grande repercussão internacional. Rapito contempla essas duas frentes, embora numa escala “de câmara”, centrado em poucos personagens. Bellocchio, aos 84 anos, conserva a garra da encenação e a prática de criar retratos fortes, de gente e de época. A luz desse filme é uma bela sugestão visual das cidades italianas daquele período. E ao retardar a revelação dos detalhes do batismo para o último ato, o roteiro acerta no alvo, deixando à mostra a insensatez de todo o episódio.
>> O Sequestro do Papa está nos cinemas.


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