Minha mãe era uma peça

MALU

Uma das melhores estreias em longa-metragem do cinema brasileiro recente é a de Pedro Freire com Malu. Experiente em curtas e séries de TV, Freire dá um salto notável nesse perfil de sua mãe, a atriz Malu Rocha (pseudônimo de Maria de Lourdes Carvalho Carneiro, 1947-2013). Para além de sua personagem central, Malu é um retrato matizado e minuciosamente dissecado de três gerações de mulheres vivendo o limbo existencial dos anos 1990.

Há um tanto de carinho e outro tanto de coragem na exposição desse pequeno núcleo familiar. Na casa de favela da Zona Sul, próxima do mar, Malu, sua mãe e sua filha vivem uma relação que alterna, como numa montanha russa, confrontações destrutivas e manifestações de afeto e cuidado recíprocos.

Malu é rebelde, libertária, teatral e desbocada. Lambe as feridas do desemprego com a saliva da memória de tempos melhores, quando fazia teatro político antes que a ditadura cortasse seu barato. Anda às turras com a mãe carola e conservadora, que coloca a instabilidade de Malu na conta da maconha e do que considera más amizades. A filha de Malu, por sua vez, é a jovem atriz Joana (síntese dos filhos reais Isadora Ferrite e Pedro Freire), que chega em visitas e vê com olhos condescendentes a ilusão da mãe de construir uma espécie de centro cultural na favela.

Temos aí três formas de vida representativas de opções e de épocas diferentes. A avó usa o álibi da religião e do cuidado materno para encobrir uma perversidade recôndita. Malu encarna a energia revolucionária dos artistas formados na década de 1960, com seus bons fluidos e também com sua dose de impiedade. Joana, por sua vez, é a geração posterior, bem comportada e focada em objetivos concretos e mais individualistas. Os choques, é claro, são inevitáveis.

Pedro Freire conduz esse terceto com uma precisão emocional admirável. O filme combina cenas muito curtas e agudas com diálogos mais longos e excruciantes que exalam autenticidade. Na convivência turbulenta das três mulheres vêm à tona relatos de um passado traumático, que inclui abuso sexual, internação compulsória, ressentimentos e choques com o poder ditatorial.

A fotografia de Mauro Pinheiro Jr., em tela quase quadrada, enfurna o elenco em espaços geralmente exíguos, o que acentua a comoção dos contatos. É nesse concentrado de profunda humanidade que brilham intensamente as atrizes e atores. Yara de Novaes, como Malu, é simplesmente arrebatadora e séria concorrente com Fernanda Torres em Ainda Estou Aqui como melhor atriz de cinema da temporada. Não ficam atrás Juliana Carneiro da Cunha, perfeita na alienação de Dona Lili, e Carol Duarte, um coração exposto nos olhos como a perplexa mas assertiva Joana. Átila Bee e Marcio Vito também reluzem em suas participações pontuais.

Malu tem a dureza das palavras que ferem, mas também um humor inesperado que nos conecta em diferentes níveis com aquelas três mulheres. Estamos diante de um microcosmo da complexidade da vida.

>> Malu está nos cinemas     

2 comentários sobre “Minha mãe era uma peça

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