A escritora sob disfarce

ENTRE DOIS MUNDOS

Ver Juliette Binoche procurando emprego e topando limpar banheiros públicos pode desconcertar o espectador que entre nesse filme sem ter lido a sinopse. Ela admite não ter experiência no ramo dos “serviços gerais” e aprende como deverá sensibilizar seus potenciais empregadores: “diga que é dinâmica, colaborativa e quer trabalhar em empresas líderes”. Marianne, na verdade, é uma escritora que mergulha a mão na merda para produzir um livro sobre o desemprego e a precarização do trabalho na França de hoje.

Entre Dois Mundos (Ouistreham) se baseia no livro Le Quai de Ouistreham, de Florence Aubenas, que viveu experiência semelhante à da personagem. É uma dessas autobiografias sociais à la Annie Ernaux, que estão na ordem do dia.

O problema é que Marianne esconde sua condição das companheiras de faxina numa balsa que faz a travessia entre Caen, na França, e Portsmouth, na Inglaterra. Assim o filme de Emmanuel Carrère procura levantar uma discussão sobre ética no trabalho literário. O escritor deve revelar-se aos seus modelos ou manter-se disfarçado para melhor assimilar a verdade do universo que pretende representar? Será isso uma traição ou uma medida de cuidado para com o retrato a ser produzido?

Marianne dissipa as diferenças de classe entre ela e as colegas a ponto de sinceramente se apegar a duas delas. Mas, ao mentir sobre sua vida real, põe em risco o senso de comunidade que desfruta entre as faxineiras da balsa.

Talvez Entre Dois Mundos seja menos incisivo do que se esperaria, mas ainda assim suscita claramente essas discussões. É mais um filme francês a abordar o mundo do trabalho com olhar atento aos detalhes. Junto com Marianne, nós penetramos na intimidade daquelas mulheres, guiados por uma mise-en-scène naturalista excepcional. Na maior parte do tempo, é como se assistíssemos a um documentário de observação muito bem sucedido.

A ligação entre as mulheres tem momentos de pura emoção e um bocado de humor. Juliette Binoche atua em sua típica chave de mulher desafetada e, em boa parte do filme, deixa-se servir de escada para Hélène Lambert, um primor de carisma e legitimidade no papel de Chrystèle.

Se é um bocado sugestivo na exposição do lado das faxineiras, o roteiro deixa a desejar no que diz respeito ao “outro mundo”, o da escritora. Não sabemos como Marianne elabora sua pesquisa no rumo do livro. De certa forma, ela esconde a sua realidade e seu ofício também de nós, espectadores. Isso não significa que necessariamente nos aliemos às suas colegas no desfecho amargo que nos é reservado. Esse é um filme que nos interroga.

>> Entre Dois Mundos está nos cinemas.

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