Notas sobre os filmes NIKKI DE SAINT-PHALLE (nos cinemas) e ARCHITECTON (em mostra brasiliense)
Psiquiarte sem obras
É um tanto frustrante assistir à biografia de uma artista em que não aparece nenhuma de suas obras. A produção de Niki de Saint-Phalle (Niki) não obteve autorização para reproduzir seus quadros, colagens e esculturas. Assim, as telas aparecem sempre de costas, e das criações só vemos um pouco do processo.
Então por que ver esse filme?
Há várias razões. A começar pela performance e incrível semelhança da atriz Charlotte Le Bon como Niki de Saint-Phalle (1930-2002). Depois, pela vivacidade com que o filme pinta o ambiente da Paris dos anos 1950 e 1960 como vivida pela vanguarda dos Novos Realistas, adeptos da sucata e da ressignificação de produtos de consumo. Niki abandonou o primeiro marido e os filhos para viver com o escultor Jean Tinguely, de quem foi parceira em vários trabalhos, e conviveu com Jasper Johns, Marcel Duchamp e muitos outros artistas revolucionários.
É útil que o espectador conheça minimamente a obra de Niki para preencher as lacunas, muito embora o filme só cubra seus primeiros anos como modelo, atriz, pintora e escultora. Depois da fase dos quadros “pintados” a tiros sobre objetos e sacos de tinta, nada é mostrado das Nanas, das Noivas e do Jardim do Tarô que consolidariam sua fama como artista surrealista e feminista.
Sem o acréscimo mental das obras, ficaríamos somente com a história de uma mulher atormentada por paranoias, hipertireoidismo e o trauma de ter sido abusada sexualmente pelo pai durante a adolescência. A simples visão de uma Medusa podia ser gatilho para o seu horror antifálico. Niki reagia à violência do mundo masculino com atitudes agressivas em suas obras, como os dardos atirados sobre figuras de homens e os tiros sobre tela (veja aqui um registro). Um retrato psiquiátrico, mais que tudo, que inclui sanatório e eletrochoques.
Em seu primeiro longa como diretora, a atriz Céline Sallette demonstra segurança e noção de síntese. A fotografia com lentes vintage confere um visual semelhante ao bom e velho Technicolor. Pena que faltaram as obras para melhor dimensionar o impacto do mundo sobre Niki e de seu trabalho sobre a arte do seu tempo.
>> Niki de Saint-Phalle está nos cinemas.
De pedras e cacos
Brasília verá, de 13 a 17 de agosto, mais uma edição da Cinema Urbana – Mostra Internacional de Cinema de Arquitetura. A programação se divide em 12 grupos temáticos sob o guarda-chuva “Paisagens Radicais”. Veja aqui os detalhes.
Um dos grandes destaques do ano é o filme de abertura, Architecton, o novo documentário do cultuado Viktor Kossakovsky. Trata-se de um ensaio visual contemplativo, intrigante apesar de taciturno, sobre o ciclo que leva as pedras da Natureza à construção de casas e depois a retornarem como ruínas ao domínio da Natureza. Com um uso realmente revelador de drones, Kossakovsky filma ruínas antigas e novas na Ucrânia, na Turquia e no Líbano. Constrói imagens mesmerizantes de uma imensa pedreira recortada para a produção de concreto, assim como verdadeiros balés de pedras sendo trituradas numa planta industrial.
O caos da Natureza está sendo convertido em material para a ordem das cidades enquanto as guerras não chegam para destruí-las. Em contraste com a solidez da arquitetura antiga – colunatas, arcadas, muralhas e torres de pedra que resistiram a séculos – vemos a fragilidade das construções modernas de cimento e concreto, facilmente reduzidas a cacos pelos bombardeios.
Essa reflexão é sustentada pelo arquiteto e designer italiano Michele de Lucchi, empenhado em formar um círculo de pedra no jardim de sua casa, dentro do qual só os animais seriam autorizados a entrar. Um círculo mágico, diz ele, porque não tem função. Michele visita as ruínas de Baalbek, no Líbano, e se detém diante da Trilithon, considerada a maior pedra já cortada pelo homem no mundo. “Que tecnologia usaram para cortar isso”, pergunta-se.
O arquiteto lamenta que não se construam mais edifícios sólidos como os da Antiguidade. Parece, assim, ignorar que as condições sociais e econômicas de hoje não são as mesmas, sem o trabalho escravo e as divisões tão rígidas entre a elite que habitava os palácios e templos, e o povo que vivia em cavernas. A tese de Architecton, para usar um termo adequado, não se sustenta em pé, mas o filme é de uma beleza hipnotizante.


