MALÊS
Só recentemente o cinema brasileiro começou a saldar sua dívida para com um episódio notável da resistência negra nos tempos da escravidão. A Revolta dos Malês foi um levante de pretos escravizados e forros de fé islâmica, que tentaram ocupar a Bahia em 1835 e melhorar suas condições de vida. A insurreição acabou sufocada, com muitos mortos entre os revoltosos.
Em 2019, Belisário Franca e Jefferson De realizaram a minissérie Revolta dos Malês, da qual resultou um longa-metragem homônimo lançado em 2021. Agora é a vez de Antonio Pitanga dirigir Malês, tendo a seu favor, antes de mais nada, o lugar de fala de ser baiano.
Em ambos os casos, partiu-se da ideia de nomear o delator anônimo que teria facilitado a repressão aos insurretos. Enquanto nas obras de Belisário e Jefferson, essa personagem ficcional era uma mulher escravizada em luta para evitar que a filha fosse levada a leilão e feita escrava sexual, no filme de Pitanga teremos uma representação da fissura entre muçulmanos e adeptos da umbanda.
O roteiro de Manuela Dias privilegia, de início, a apresentação das situações: os muçulmanos letrados e organizados nos intentos de juntar dinheiro para comprar a alforria do maior número de companheiros, construir uma mesquita e afirmar sua fé em terra brasileira; os umbandistas, mais voltados para seus rituais e para a sabedoria ancestral; os católicos, associados ao poder escravocrata; e o casal vivido por Rocco Pitanga e Samira Carvalho, brutalmente separado na África e reunido de novo no Brasil.
As falas um tanto expositivas e a filmagem muito convencional dão um certo ar de telenovela a essa primeira parte. Mas o objetivo didático acaba sendo útil para a segunda metade, quando o filme ganha tônus e os desdobramentos da trama se tornam mais palpitantes.
Antonio Pitanga acumula o papel de Licutan/Pacífico, velho escravizado cuja liberdade o seu senhor se recusa a vender. Ele reuniu os dois filhos no elenco, dando a Camila Pitanga o papel mais trágico e complexo de todos. Patricia Pillar e Ítala Nandi também se destacam em personagens antípodas de suas personas artísticas habituais.
Malês mobiliza com acerto os sinais de orgulho, resiliência e senso de comunidade dos afrodescendentes. Essa visão positivante, porém, deixa de lado aspectos mais intrincados da revolta, como a licença para matar brancos e mestiços, além de escravizar negros tidos como infiéis. O filme fala de crueldade branca e heroísmo negro de maneira praticamente dicotômica, sem áreas cinzentas.
A produção de Flavio Ramos Tambellini tem uma robustez que se traduz na direção de arte econômica mas eficaz e na fotografia do craque Pedro Farkas. O trabalho com os sotaques de gente de fala árabe é um dado a favor da qualidade do elenco.
>> Malês está nos cinemas.

