Amor e guerra no Cáucaso

TESNOTA

TESNOTA é um filme que nos coloca em extrema proximidade dos seus personagens (“proximidade” é a tradução do título original) e ao mesmo tempo nos faz sentir a mundos de distância de quase tudo o que vemos. Por isso mesmo, é uma experiência cinematográfica peculiar.

No texto de abertura, o diretor estreante Kantemir Balagov apresenta a si mesmo como um filho daquela cidade de Nalchik, remota e desbotada capital de um pequena república do Cáucaso, no sudoeste da Rússia. Ele diz que vai contar uma história real. Após o último plano do filme, seu texto retorna para anunciar que “não sabe o que aconteceu àquelas pessoas em seguida”.

Entre um letreiro e outro, conhecemos uma pobre família judaica recém-mudada para a cidade, cujo filho é sequestrado junto com a noiva em troca de um resgate altíssimo. A comunidade judaica se mobiliza, mas o dinheiro recolhido só dá para pagar a libertação da moça, que é nativa do local. Para ter de volta seu filho, os Koft precisarão ceder a filha Ilana a um jovem pretendente de uma família de posses. Mas Ilana mantém um namoro clandestino e arriscado com um rapaz da etnia cabardina, cuja maioria é de muçulmanos.

Nessa toada, tudo o mais vira pano de fundo para o desenho da personalidade angustiada e efervescente de Ilana, vivida com rara intensidade pela atriz novata Darya Zhovnar. Como mulher, Darya é quase uma sósia da jovem Jodie Foster; como atriz, é um manancial aparentemente inesgotável de surpresas e sutilezas; como personagem, Ilana lembra a Rosetta dos Irmãos Dardenne. Desconfortável dentro da família, ela nutre uma relação de amor incestuoso e ódio com o irmão, a quem julga privilegiado pelos pais. Seu apego sôfrego, mas vacilante, ao namorado “de outra tribo” é uma válvula de transgressão que ela não sabe bem como usar.

Transcorrida no ano de 1998, essa história sofre os eflúvios da guerra da Chechênia, muito próxima de Nalchik, e dos conflitos étnico-religiosos que abalaram a região após o fim da União Soviética. Numa sequência muito discutida quando o filme passou em Cannes 2017, Ilana, o namorado e seus amigos assistem a um dos tantos vídeos que circularam na época, mostrando execuções bárbaras de soldados russos por guerrilheiros chechenos. Ao colocar esse material hediondo dentro de uma tela de TV sendo visto pelos personagens, Balagov se permitiu algo que, de outra maneira, seria inconcebível fora do campo do snuff movie. Ainda assim, pode causar mal-estar e rejeição. Ninguém exibe esse tipo de coisa impunemente.

Relevada essa impropriedade, TESNOTA se afirma como um filme de câmara muito rigoroso e interessante. As lentes usadas pelo fotógrafo Artem Yemelyanov compactam o espaço, deixando os atores numa proximidade sufocante. A imagem em proporção quadrada acentua a sensação de claustrofobia, só aliviada nas cenas finais. Os ruídos ambientais ganham um destaque dramático, contribuindo para a rusticidade do ambiente e das interações pessoais.

Merece atenção, mais que tudo, a construção estética e psicológica da personagem de Ilana. De modos, feições e roupas masculinizadas, ela, no entanto, é um furacão de desejo heterossexual usado como arma contra as convenções sociais. A particular preferência pela cor azul, em meio aos ocres e cinzas do entorno, ajuda a marcá-la como fator de dissenso e desacato numa comunidade dominada por códigos e segmentações rígidas.

Um comentário sobre “Amor e guerra no Cáucaso

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