O ACIDENTE + uma nota sobre CORDIALMENTE TEUS
O acidente que dá título a este filme de Bruno Carboni é uma variação do conhecido “patriota do caminhão”. Joana (Carol Martins), tradutora e ciclista temerária, é cortada por um carro e resolve tomar satisfação da motorista. Irritada, esta a arrasta pendurada no capô do carro enquanto o filho, no banco do carona, filma a ocorrência com seu celular.
Está lançada uma rede de rebatimentos que, no início, parecem não se conectar muito bem. Joana vive com sua companheira (Carina Sehn) e está grávida por inseminação artificial. Num impulso algo maternal, ela passa a seguir o menino, um pequeno lobo solitário que filma micro-acontecimentos para confirmar que “as coisas existem”. Assim, Joana acaba interagindo com uma família disfuncional em que os pais disputam a guarda e a formação do filho “estranho”.
Tendo Porto Alegre como pano de fundo e a partir dos seus três semiplots (o acidente, a ideia de família e a maternidade), O Acidente costura uma trama sutil até que cada linha se entrelace com as outras de maneira nunca explícita, mas que pode ser intuída. Eventos mínimos, como um descolamento de azulejos ou as rachaduras numa tela de celular, podem indicar o desequilíbrio fundamental a que estamos constantemente expostos, seja no trânsito, seja em casa.
É preciso dar o desconto para algumas pequenas incongruências no roteiro, assim como para o ritmo às vezes compassado demais. Carboni, porém, consegue impor seu estilo seco, elíptico, baseado numa câmera geralmente imperturbável na captação de ações e conversas. O garoto Luis Felipe Xavier é um fenômeno de adequação ao papel. A trilha musical discreta e austera de Maria Beraldo serve bem às emoções comedidas do filme, que vez por outra me lembrou o cinema de Hirokazu Kore-eda.
>> O Acidente está nos cinemas.
A violência através dos tempos
O título de “Cordialmente Teus” não podia ser mais irônico para um filme que trata de violência, tortura, perseguições e neurose urbana. Aimar Labaki (não confundir com seu irmão, o crítico Amir Labaki) levou sua tarimba de dramaturgo para o cinema sem medo de soar áspero e contundente.
Numa estrutura que se assemelha à de “Intolerância”, de Griffith, mas sem a alternância de módulos, “Cordialmente Teus” sintetiza 10 histórias de violência do estado e do sistema vigente em diversas épocas. De um português torturando um indígena em 1566 a uma agente de governo interrogando uma mulher negra em 2066, são 500 anos de um Brasil que não se livra do colonialismo, da herança da escravidão e do rentismo, entre outras desgraças.
O espectro de acontecimentos no pano de fundo inclui o genocídio de judeus pela Inquisição, a fuga de pessoas escravizadas para os quilombos, o choque econômico vindo com a República, os racionamentos em tempo de guerra, a luta contra a ditadura nos anos 1970, o massacre do Carandiru. O arco é ambicioso, embora preenchido por esquetes sintéticos, intimistas e às vezes apenas alusivos.
A infalível Débora Duboc e a veterana Miriam Mehler integram um elenco numeroso, dirigido com mão teatral em cenários requintadamente iluminados por Jacob Solitrenick.
>> Cordialmente Teus está disponível nas plataformas Google Play, Amazon e AppleTV.

