ALMA VIVA no streaming
por Sérgio Moriconi
Por que voltar a falar de Alma Viva, um dos mais belos filmes portugueses dos últimos anos, lançado no Brasil há pouco mais de dois meses, mas ainda disponível no streaming? Simples: Alma Viva foi considerado o melhor filme de 2023 na décima-segunda edição dos Prêmios Sophia, distinção concedida pela Academia Portuguesa do Cinema. É o filme de estreia de Cristèle Alves Meira, o que não deixa de impressionar, dada a segurança dramatúrgica da diretora. O filme foi rodado em Junqueira, Conselho de Vimioso, onde a realizadora tem raízes maternas. Alma Viva utiliza atores profissionais e não profissionais, inclusive a própria filha da diretora, Lua Michel (Salomé), de apenas 11 anos, num excepcional papel protagonista. A trama principal gira em torno da relação da menina com a avó (Ester Catalão), durante o seu período de férias escolares, passadas numa pequena aldeia da região de Trás-os-Montes.
A perspectiva do filme é a da menina que observa, e sofre influência, da cultura local e da vinculação dessa cultura com o comportamento da avó que tanto ama. Neste, e em alguns outros aspectos, Alma Viva nos faz lembrar Cria Cuervos, de Carlos Saura. Ambos são histórias, digamos, de crianças e fantasmas. O filme, entretanto, tem várias camadas. Ele trata da dicotomia entre o arcaico e o moderno, trata dos paradoxos entre emigrados e retornados e, ainda que superficialmente, de questões de gênero. Tudo isso está lá, porém há algo de extraordinário e íntimo no tratamento meio que fantástico, uma espécie de naturalismo mágico, construído a duas mãos pela excepcional fotografia de Rui Poças e a direção de Cristèle. Lembramos do filme de Saura, mas há também muito da atmosfera delicada, sutil, vaga e hermética da diretora argentina Lucrecia Martel, especialmente de A Menina Santa e O Pântano.
A história é quase toda centrada em Salomé, a menina que viaja para uma minúscula aldeia de Portugal, para passar as férias escolares com a avó (Ester Catalão), com quem, lembramos, tem um genuíno afeto. É a relação das duas personagens que interessa a Cristèle, mas a construção das cenas e o tratamento dado a elas engendra uma segunda narrativa, cuja ênfase é muito mais atmosférica, furtiva e enigmática. Interessa ressaltar a ligação emocional muito forte e terna entre neta e avó, assim como a dicotomia entre o espírito livre das duas e o comportamento fossilizado, primitivo, dos moradores do lugar. A diretora cria todo um mundo feito de muxoxos, ruídos, silêncios, tempos estendidos, palavras ditas e não ditas, muito parecido com aquele experimentado nos dois filmes de Lucrecia Martel mencionados. Há todo um clima funesto criado pelas mortes vivenciadas no filme, clima depois acentuado pelas mesquinhas discussões sobre quem deve arcar com as despesas do rito fúnebre da falecida avó.
Cristèle tem como uma de suas preocupações mostrar – de forma ao mesmo tempo aguda e sutil – o contraste entre os arquétipos historicamente cristalizados da população isolada da região portuguesa de Trás-os-Montes e os familiares que retornam para o funeral da adorada avó de Salomé, todos eles emigrados para países da Europa, especialmente da França. França!, a terra prometida para gerações e gerações de portugueses da segunda metade do século XX. Cristèle sabe do que está falando, ela própria filha de imigrantes da região de Vinhais, Vimioso e Mogadouro, locais escolhidos para as filmagens de Alma Viva. E como é que ela nos mostra essas dicotomias, o choque entre as distintas culturas dos que ficam e dos que deixam o país? Sutilmente, muito sutilmente. Um dos retornados, por exemplo, – um tio enriquecido – está mais interessado na construção da piscina de sua nova e ampla casa do que nas exéquias da avó de Salomé, incluindo aqui seu desdém pela parcela dos custos financeiros que lhe caberiam.
Ah, os retornados!, eles merecem um comentário mais adiante, assim como os retornados circunstanciais, que no filme são a mãe, parentes e a própria Salomé. A menina se dá com a avó também porque ela é meio maluquinha, considerada uma bruxa pela conservadora comunidade local. É verdade, as mulheres costumam ser chamadas de “bruxas” quando têm um comportamento em inconformidade com os rígidos códigos morais de um determinado lugar. A bela cena em que a avó e a neta dançam funk e rap, acompanhando uma transmissão musical da TV, dá bem uma ideia do que está em jogo no filme de Cristèle. A televisão é o “anjo” de Teorema, de Pasolini. Sua cultura massificada, e enviesadamente modernizadora, entra pelas gretas e viola as remotas normas vigentes nos “cus do mundo”. Para o bem e para o mal, não há juízo de valor nessa analogia. O fato é que a “avó-bruxa” tem uma pequena tatuagem – vocês repararam?
Quem não tem tatuagem é a irmã solteirona da mãe de Salomé. Ela e um marginalizado tio cego permaneceram na aldeia desde sempre. Ela, a tia, tem um clandestino amor lésbico, e é assim mesmo que as coisas se passam em lugares como esse: ou se recalca (ou se sublima) os desejos, ou se vive uma relação escondida. Isolados, longe do refinamento das capitais, as pessoas se tratam grosseiramente. Os pais da diretora, que é parisiense, vieram dali. Cristèle sabe do que está falando. Ela, Cristèle, é filha provavelmente da segunda geração das hordas de imigrantes portugueses que foram tentar a vida na França, especialmente na capital. O que vemos em Alma Viva é continuidade e o choque desse movimento sociológico, cujo início está muito bem documentado no filme Le Logement (A Habitação/52min), onde o diretor Robert Bozzi registra a empobrecida comunidade portuguesa nas favelas de Saint-Denis, na periferia de Paris. Vinte e cinco anos depois, em 1970, Bozzi faz Les Gens de Barraques (A Gente das Favelas), uma espécie de enquete policial para investigar como estavam vivendo as pessoas que havia registrado no seu média-metragem anterior.
Apenas como efeito de referência, em 1970, três milhões e meio de imigrantes viviam na França, muitos deles eram portugueses. Quando Bozzi volta a investigar os antigos locais de miséria, percebe que os barracos haviam sido transformados em pequenos conjuntos habitacionais públicos, os HLM. Bozzi encontra ali várias das pessoas entrevistadas em seu primeiro filme. Eles descrevem a sórdida vivência nessas favelas, “a promiscuidade, as crianças mordidas por ratos”. Muitos deles, tendo ao longo do tempo acumulado dinheiro suficiente para construir uma casa, instalaram-se permanentemente em Portugal ou regressam no verão para férias. Essa é parte da situação que vemos no filme de Cristèle.
Através de seus personagens, a diretora desnuda em seu filme o choque cultural/identitário entre grupos sociais que se antagonizam e se contaminam. A pequena Salomé introjeta a avó – no sentido psicanalítico – para se vingar daqueles que julga terem provocado a morte dela e, como uma bruxinha aprendiz, desenvolve um tipo de solipsismo imaginário e sobrenatural, que leva o filme para uma curiosa e interessante abordagem surreal e fantasiosa. Para Cristèle, o real e o irreal são as duas faces de uma mesma moeda, que é como as coisas são nas sociedades pré-modernas. Pelo menos é assim que podemos imaginar a carnificina no galinheiro promovida por uma bruxinha Salomé possuída pela avó, não é mesmo?
Sérgio Moriconi
>> Alma Viva está na plataforma Reserva Imovision.


