O quilombo das cross-dressers nos anos de chumbo

CASA IZABEL

Em 1970, no auge da ditadura civil-militar, um casarão colonial de passado escravagista serve de quilombo para outro tipo de escravização. Homens insatisfeitos com sua “prisão” masculina se hospedam ali para viver fantasias femininas como cross-dressers. Observam uma série de regras como só circular “montadas”, não falar sobre suas vidas exteriores, nem praticar sexo. Trata-se apenas de viver personagens como uma famosa atriz de Hollywood, uma corretora de imóveis de luxo ou uma Primeira Dama.

A partir da chegada de “uma novata”, adentramos esse microcosmo de liberação do faz-de-conta em era pré-drag, em cujas paredes reluzem fotos de grandes atrizes reais. Jantares ao som de uma pianista muda e impassível, bebedeiras e devaneios ocupam as noites do pequeno grupo. A certa altura, vamos conhecer Izabel (Luiz Mello), a matriarca da casa, fisicamente decadente, mas ainda apegada ao capricho de emular a princesa que assinou a Lei Áurea.

Misto de thriller e comédia queer, o paranaense Casa Izabel oferece excentricidades bem servidas em embalagem caprichada. O elenco impecável se movimenta à perfeição nos moldes burlescos dos figurinos (Igor Urban), perucas e maquiagens (Anna Schoemberger). A ótima trilha sonora de Fábio Peres e Jean Gabriel é quase onipresente, abrindo espaços para interlúdios musicais surpreendentes. A direção de Gil Baroni (Alice Júnior) orquestra todos os elementos com muita habilidade.

O filme se inspira no livro Casa Susanna, de Michel Hurst e Robert Swope, que reuniu fotos de uma casa semelhante na Nova Jersey dos anos 1950-60. A adaptação ao Brasil trouxe o tema da repressão ditatorial e da herança escravocrata. O único personagem negro, Victor/Leila (Jorge Neto), é um serviçal na casa. Separada da casa-grande fica a senzala, onde a empregada Dália (Laura Haddad), única pessoa cis na casa, chora o desaparecimento do filho envolvido com a “revolução” e mantém um misterioso prisioneiro. Um ensaio de suspense se forma em torno da possível infiltração de agentes do regime e da revelação pública do que se passa na casa.

O roteiro deixa várias pontas soltas e ações inconclusas, mas não achei que isso fosse tão importante. O que agrada em Casa Izabel é sobretudo sua hipótese dramática e sua abertura para ancorar o delírio. Vieram-me à lembrança algumas referências, como as fábulas queer de João Pedro Rodrigues, o clima nebuloso de alguns filmes de Walter Hugo Khouri, a natureza morta humana de Albert Serra em A Morte de Luís XIV (especialmente na caracterização de Luiz Mello) e até o confinamento pervertido de Salò, de Pasolini.

>> Casa Izabel está nos cinemas.

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