LEVADOS PELAS MARÉS
Nesse que é talvez o seu projeto mais heterodoxo, Jia Zhang-ke compõe um film-fleuve com materiais filmados ao longo de três décadas. Além de sobras de dois filmes, há cenas rodadas como experimentação em várias épocas, tudo tenuemente reunido em torno da história de um casal. Zhao Tao, sua esposa e atriz permanente, e o ator Zhubin Li formam esse eixo tristemente romântico entre 2001 e 2022.
Levados pelas Marés (Feng liu yi dai) possui três atos definidos por datas e atmosferas diferentes. Em 2001, na cidade de Datong, Zhao Tao, aos 24 anos, é Qiaoqiao, dançarina e garota-propaganda tiranizada pelo namorado, Guo Bin. As cenas são extraídas de (ou não utilizadas em) Prazeres Desconhecidos, de 2002. A juventude chinesa vivia, então, uma imersão esfuziante e meio sem rumo na cultura ocidental. Uma sequência no deteriorado Palácio Cultural dos Trabalhadores sinaliza o abandono das tradições comunistas da era Mao Tsé-Tung.
Nessas passagens, sensualizando em público, Zhao lembra o hedonismo de Helena Ignez nos filmes “marginais” de Rogério Sganzerla ou de Anna Karina na obra de Godard. Mas esse é um primeiro ato dedicado também à imagem da mulher chinesa que dança, canta e se diverte. Daí a presença de trechos documentais com cantorias informais, óperas e bailes coreografados. A variedade de texturas e qualidades dos materiais indica que foram reunidos mais por afinidade de espírito que por razões narrativas.
Guo Bin abandona Qiaoqiao para tentar a sorte em outra província. Cinco anos depois, ela o procura em meio às obras de demolição da cidade de Fengjie para a construção da represa de Três Gargantas. Já aí Zhao Tao reaparece em cenas excluídas de Em Busca da Vida, o clássico de 2006. O clima se torna melancólico, o ritmo das tomadas se alonga conforme Qiaoqiao deambula em meio aos escombros de Fengjie e às margens do rio Yangtsé. Mais uma vez, o casal se vê separado, assim como a China se apartava fisicamente do seu passado.
O terceiro ato tem lugar em Zhuhai durante a pandemia Covid-19. As dificuldades para filmar na China nessa fase levaram Jia Zhang-ke a optar pelo modelo de reciclar imagens do passado. Aqui os dois protagonistas vão se reencontrar em contextos emocionais muito diferentes. O envelhecimento de Qiaoqiao e Guo Bin contrasta agora com a nova cara da China na zona econômica especial de Zhuhai. Robôs, supermercados imaculados, câmeras de segurança, gravações de Tik-tok por toda parte e ruas multicoloridas compõem a paisagem.
Qiaoqiao não pronuncia uma palavra sequer no filme inteiro. Sua expressão é pelo olhar e os movimentos do corpo. Pode ser um capricho do diretor, ou simplesmente uma forma de escapar dos sentidos de cada filme original. É pelo corpo, aliás, que ela vai assinalar sua decisão final depois dos traumas amorosos sofridos com Guo Bin.
Levados pelas Marés faz um retrato impressionista da mulher chinesa e das transições do próprio país, como de praxe em Zhang-ke. A forma experimental convida o espectador a completar as lacunas e compreender a liberdade de uma construção eminentemente poética. Sem dúvida, o conhecimento do método e dessas referências, somado à relação afetiva que desenvolvemos com o cinema desse criador intrépido, ajuda um bocado a acompanhar o movimento das marés.
>> Levados pelas Marés está nos cinemas.



