A história do homem de 40 dedos

MISTY: A HISTÓRIA DE ERROLL GARNER

Quem aprecia um mínimo de jazz certamente se deixa enredar pelo piano de Erroll Garner (1921-1977). A delicada rapidez com que ele deslizava pelas teclas, a forma como desconstruía as músicas até certo ponto, deixando intacto o cerne e o sentimento das melodias em meio à improvisação, a divisão inesperada das frases musicais – tudo isso fazia dele um gênio singular. Diziam que o piano foi inventado para ele, com seus “40 dedos”.

Vê-lo tocar acrescenta mais uma camada de admiração. Suas mãos brincavam sobre o teclado como se não estivessem ligadas ao resto do corpo, enquanto seu rosto simplesmente se deliciava, como se ele estivesse mais ouvindo que tocando. Há muitas cenas assim reunidas nesse documentário biográfico dirigido pelo francês Georges Gachot, autor de filmes sobre músicos brasileiros como Maria Bethania: Música é Perfume e Onde está Você, João Gilberto?

No título, a referência à composição mais célebre de Garner, Misty, segundo ele criada durante um voo de avião em tempo nublado. Uma bonita montagem de depoimentos modulados por música reconta a trajetória do pianista. Seu baixista mais fiel, Ernest McCarty, o baterista Jimmie Smith e o biógrafo Jim Doran discorrem emocionadamente sobre o estilo às vezes desconcertante de Garner liderar suas performances, sem que os outros músicos soubessem por onde ele “andaria”. Uma belíssima sequência reúne virtualmente o Garner de ontem e os parceiros ainda vivos numa recriação do standard Coquette.

Não se trata, porém, de uma hagiografia sem contrapontos. Fala-se na maneira um tanto egoísta com que Garner tomava para si todos os solos e, inflado pela produtora Martha Glaser, não dava espaço de divulgação para seus companheiros de palco.

Mais grave ainda é o perfil pessoal que emerge das participações de Kim, a filha rejeitada de uma primeira união, e de Rosalyn Noisette, a companheira que esteve com ele até o fim. Ambas carregam lembranças dolorosas de abandono físico ou financeiro por um homem que vivia para si mesmo e sua música.

Garner se orgulhava de ser um autodidata e buscar a alegria de um “happy jazz”. Mas será que se dava conta da infelicidade semeada ao seu redor? Isso os sorrisos ao piano que vemos em Misty: A História de Erroll Garner não respondem.

>> Misty: A História de Erroll Garner está nos cinemas.    

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