Parábola do bom muçulmano

FOI APENAS UM ACIDENTE

Mais uma vez eu remo contra a corrente da crítica majoritária. Embora reconheça em Foi Apenas um Acidente (Yek tasadef sadeh) um libelo poderoso contra a ditadura iraniana, não vejo ali uma coerência que sustente as curvas dramáticas do filme.

Jafar Panahi se vale da estrutura habitual do road movie iraniano para denunciar as formas de tortura e os estragos traumáticos provocados nas vítimas da repressão. Leva seus personagens no rumo de uma catarse feroz, expressando tudo aquilo que os opositores gostariam de cuspir na cara dos seus algozes. Mas um requisito moral impede que se usem os mesmos métodos do governo. Qual o lugar da violência reparadora – é o que se pergunta.

O atropelamento de um cachorro é o primeiro sinal de que as coisas não vão bem para Eghbal (Ebrahim Azizi). Ao levar o carro para conserto numa oficina, seu andar característico é reconhecido por Vahid (Vahid Mobasseri), a quem teria torturado na cadeia. Vahid o sequestra, disposto a enterrá-lo vivo, mas suspende a operação a meio caminho na dúvida se aquele homem seria mesmo o “Perneta” que havia estragado seu rim na tortura e provocado o suicídio de sua noiva. A fim de obter maior certeza, ele sai em busca de outros ex-presos políticos que possam confirmar o reconhecimento.

O que se segue tem tintas de comédia mórbida e quase surrealista, especialmente depois que se juntam um casal com roupas de noivos e um rapaz de temperamento explosivo com sede de vingança. Não é à toa que o filme indicado para representar o Irã no próximo Oscar, Causa da Morte: Desconhecida, também tenha uma van no deserto com um corpo prestes a ser enterrado. A metáfora de uma sociedade assombrada pelo silenciamento parece evidente.

Enquanto se move pela cidade, a van de Vahid testemunha a corrupção disseminada pelos vários setores, a insensibilidade da burocracia, mas também a determinação das mulheres em afrontar o status quo, representada pela fotógrafa que só usa o hijab em circunstâncias especiais.

Panahi põe em cena alguns motivos caros ao cinema iraniano e ao seu próprio. Um deles é a dramaturgia do automóvel, um movimento constante que descortina paisagens e dilemas dos personagens. Outro é a noção de obstinação, que leva as pessoas a fazerem de tudo para conseguir alguma coisa, seja um peixinho dourado, seja um par de tênis ou uma verdade redentora. Outro ainda é o balanço moral entre o que se deseja e o que se deve fazer. O senso de justiça, segundo o Alcorão, deve ser temperado pela misericórdia e a compaixão.

Essas virtudes vêm à tona na história de Vahid quando ele e seus amigos descobrem que a mulher do provável torturador está em perigoso trabalho de parto. A virada de comportamento soa excessiva, para além do verossímil diante do perigo potencial. Daí em diante, na minha apreciação, o filme perde um bocado de sua lógica em troca de uma parábola sobre a ética do bom muçulmano.

Há mesmo uma perda de ritmo que se agrava nas cenas finais, quando Panahi expressa, através de uma personagem, sua indignação furiosa contra a violência do regime. Já o plano final é uma representação tão silenciosa e estática quanto eloquente do impasse do cidadão iraniano entre a fúria vingativa e a boa fé.

Foi Apenas um Acidente é um filme politicamente valioso e corajoso. Contribuiu para que o governo iraniano redobrasse sua perseguição a Panahi, condenando-o esta semana a um ano de prisão e dois anos sem poder sair do país – do qual, aliás, ele está fora. Mas nada disso o faz mais merecedor da Palma de Ouro de Cannes do que O Agente Secreto, que ficou com melhor direção e melhor ator. Creio que Juliette Binoche concorda comigo.

>> Foi Apenas um Acidente está nos cinemas.

4 comentários sobre “Parábola do bom muçulmano

  1. O final é bom!!! Também achei o meio do filme mais desinteressante. O texto, por exemplo, na cena de todos no deserto. Mas o início e o final, especialmente, são bons.

  2. Concordo com tudo!

    Mais uma vez confunde-se uma boa história com um bom filme!

    Embora seja bom, não é o melhor.

  3. Oi querido,

    Gostei muito do filme até exatamente o ponto que você menciona na sua critica ! Me deixou com um certo inconforto que nao sabia bem expressar, e acho que a sua leitura me ajudou nisso.

    Abraços e saudades,

    Sylvie

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