África, entre guerra e música

Notas sobre a animação NAYOLA: EM BUSCA DE MINHA ANCESTRALIDADE e o documentário RAZÕES AFRICANAS

Realismo mágico na guerra de Angola

A hoje pacificada Angola viveu 27 anos de guerra civil, entre 1975 e 2002. Foi uma guerra fratricida em que dois movimentos de guerrilha anti-imperialista se digladiaram pelo controle do país, replicando internamente a Guerra Fria. Esse é o cenário da animação Nayola, coprodução de Angola e Bélgica. Uma animação dramática para adultos, onde não faltam violência e alusões mitológicas.

Dirigido pelo português José Miguel Ribeiro, Nayola se baseia na peça teatral A Caixa Preta, do angolano José Eduardo Agualusa e do moçambicano Mia Couto. Temos em cena três mulheres de gerações diferentes. A neta Yara é uma rapper inconformista que enfrenta a polícia para vender seu CD com composições de protesto. Ela mora com a avó Lelena, que viveu a guerra colonial e viu a filha Nayola abandonar a família oito anos antes para sair à procura do marido, dado como morto na guerra civil. Ou seja, temos aí três tempos de uma Angola conflagrada.

O espectador é atirado num vai-e-vem entre passado e presente, acompanhando ora a busca de Nayola em meio ao conflito, ora as incursões urbanas de Yara em 2011. A trama deságua num encontro entre a avó, a neta e um misterioso homem com máscara de chacal que aparece em sua casa.

O realismo cru da guerra entre parentes e da luta pela sobrevivência se mescla a uma vertente africana do realismo mágico cultivada por Agualusa e Couto. Os animais participam ativamente da fabulação, propiciando linhas de fuga encantadas para as atribulações de Nayola. O último ato é especialmente enigmático e me deixou à deriva.

Mais que o enredo em si, o que me conquistou foi mesmo a qualidade do desenho enquanto arte visual. A impressão de tridimensionalidade é muito bem conseguida a ponto de sugerir uma filmagem em 3D. As cenas de rua de Luanda têm uma vivacidade contagiante. Em certos trechos, a inserção de imagens documentais surte um efeito poderoso, como é o caso da passagem de Nayola pelos pátios azulejados do Museu Nacional de História Militar de Angola. Vale registrar que o gesto de depredar as pinturas em azulejos como protesto anticolonial não enobrece a personagem.

Quanto ao subtítulo brasileiro, Em busca de minha ancestralidade, não vejo razão adequada no filme, a não ser o cumprimento a um clichê antropológico em voga.

>> Nayola está nos cinemas. 

De onde vem essa música?

O documentário Razões Africanas faz um périplo laborioso por locais de origem e de destino de algumas tradições musicais africanas. No Rio de Janeiro, enfoca o Jongo da Serrinha. Em Cuba, aborda um grupo que empoderou as mulheres nos tambores da rumba. No Mississippi, EUA, visita um bluesman cheio de histórias. Em busca de raízes, vai a Angola, ao Mali e à República do Congo.

Como se vê, não faltou disposição a Jefferson Mello para investigar a herança musical deixada pelos escravizados que chegaram à América.

Os personagens são carismáticos. A brasileira Lazir Sinval esbanja charme e simpatia ao apresentar a comunidade jongueira de Madureira. A cubana Eva Despaigne não disfarça o orgulho pelos feitos feministas do seu grupo Obini Batá. Por sua vez, Terry ‘Harmonica’ Bean despeja com gosto suas histórias de bluesmen condenados pelos pastores de antigamente.

Por sinal, é curioso verificar como esses ritmos e estilos foram perseguidos ou sofreram restrições em outros tempos. O blues era “música do mal”. Até alguns anos atrás, às mulheres cubanas não era permitido tocar os tambores. Por aqui, sabemos bem como o samba e o jongo foram estigmatizados no passado. A existência de grupos, comunidades e artistas como os que vemos no filme testemunha uma história de resistência. O toque dos tambores e os cantos serviram muitas vezes como códigos de fuga e sobrevivência.

Razões Africanas procura combinar apresentações musicais com testemunhos de pesquisadores nos três países, com intenção claramente didática. Ainda assim, o filme se ressente da falta de conexões mais sólidas entre seus núcleos expositivos. No Mississippi, por exemplo, apesar de todo o seu carisma, o personagem não parece reconhecer o legado africano de sua música. As performances africanas, algumas bem coloridas e efusivas, permanecem um tanto isoladas no conjunto do filme e mais parecem filmagens de ocasião.

>> Razões Africanas está nos cinemas.

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