O fotógrafo do apartheid

ERNEST COLE – ACHADOS E PERDIDOS

O título original desse filme, Ernest Cole – Lost and Found, deixa mais claro o seu duplo sentido. No plano mais objetivo, trata-se das muitas fotografias de Cole desaparecidas durante décadas e reencontradas em 2016 no cofre de um banco sueco. Mas há uma acepção mais pessoal, referente aos altos e baixos da vida e da carreira desse admirável fotojornalista sul-africano.

Ernest Cole (1940-1990) foi o primeiro a expor imagens cruas do apartheid ao resto do mundo. Documentou em fotos a segregação, as remoções violentas de comunidades negras, incluindo sua família, o trabalho escravo nas minas de ouro. Em 1967, assim como muitos “africanos” (assim eram chamados os negros em oposição aos “europeus” brancos) que deixaram o país, Cole emigrou para os EUA. Em Nova York, encontrou semelhantes formas de racismo e discriminação. Mas continuou fotografando cenas urbanas, protestos e a vida dos negros no Harlem. Em 1968, foi para a Suécia, onde teve seu primeiro grande reconhecimento.

Vencedor do prêmio Olho de Ouro de melhor documentário do Festival de Cannes de 2024, Ernest Cole – Achados e Perdidos se organiza de maneira relativamente simples, enfileirando as fotos de Cole ao som de uma narração autobiográfica na voz do ator LaKeith Stanfield. O texto combina correspondência, trechos do único livro de Cole, House of Bondage, e considerações póstumas do fotógrafo, escritas pelo diretor Raoul Peck.

O haitiano Peck é autor de cinebiografias de figuras célebres como Patrice Lumumba e James Baldwin. Ao se debruçar sobre Ernest Cole, baseando-se na narrativa em primeira pessoa com poucas intervenções de cabeças falantes, ele constrói um filme importante, mas com problemas. O ponto de vista quase único não permite aprofundar as questões que levaram Cole a se tornar um pária, uma alma perdida em Nova York nos últimos anos de sua vida.

Percebemos sua indignação com o apartheid, suas inquietações quanto à vida no exílio e o desejo impossível de voltar à terra natal. Faz-se menção às críticas que sofreu por ter supostamente perdido o foco do seu trabalho e ter se rendido ao mundo dos brancos. Mas uma investigação mais aguçada certamente poderia revelar muito mais do que isso. Fontes seguras dão conta de transtornos mentais e alucinações que dificultavam até mesmo a ajuda de amigos e de programas sociais.

No que diz respeito ao estilo, o documentário se deixa atingir pelo tom sedoso e monocórdico da locução e por um tratamento bastante convencional das fotografias, submetidas a movimentos panorâmicos repetitivos. Além disso, considerando o valor atribuído ao episódio dentro do filme, não fica clara a representatividade do material encontrado na Suécia em relação ao conjunto da obra.

De qualquer forma, a história de Cole, contada em paralelo com a luta anti-apartheid, merece ser conhecida, ainda que com limitações. Ver suas fotos é passear por um condensado de humanidade e de denúncia política. As imagens de pessoas brancas olhando com raiva para sua câmera dizem mais do que qualquer libelo escrito ou falado.

>> Ernest Cole – Achados e Perdidos está nos cinemas.

 

Um comentário sobre “O fotógrafo do apartheid

  1. oi querido,

    Gostei do filme por ter ajudado a descobrir ou redescobrir esse fotografo. Um pouco com o filme sobre Franz Fanon.

    Falando em Ernest Cole e Franz Fanon, aproveito para lhe fazer uma pergunta: você conhece alguem, um critico, um pesquisador, um pensador que tem um trabalho bom e de referencia sobre a tematica da “decolonizaçao do olhar ou do cinema, que seja no Brasil ou na America Latina ? E uma tematica geral cada vez mais complexa, divisiva e polemica.

    Aqui na França, acaba de ser publicado um livro sobre a decolonizacao da filosofia francesa ( https://www.telerama.fr/debats-reportages/montaigne-ou-descartes-pensaient-ils-en-colonialistes-la-philosophie-francaise-a-l-heure-de-l-examen-de-conscience-7025962.php )

    Te faço essa pergunta porque estava pensando em propor essa tematica para o proximo numero da revista de Toulouse. E arriscado, mas necessario que analisemos a questao… Qual é a sua opiniao a respeito ? Alguma outra ideia para o dossiê de 2026 ? Normalmente vamos lançar a convocatoria no final de junho/inicio de julho… Um forte abraço,

    Sylvie

    OBS : ainda nao vendi meu apto em Sta Teresa… alguma dica para ajudar ?

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