Portugal na real

A partir desta quinta-feira, 31 de julho, o Grupo Estação traz ao Rio a mostra Terrinha à Vista, de documentários portugueses contemporâneos. Em sete filmes, um pequeno panorama da diversidade com que nossos parentes lusitanos têm tratado o cinema do real.

Em Amo-te Imenso, o diretor Hermano Moreira aborda a história de amor entre Fábio, um brasileiro meio tímido, e Maria, uma destemida portuguesa. Um romance assombrado por coisas do passado.

A Morte de uma Cidade, de João Rosas, acompanha o cotidiano de um canteiro de obras no coração de Lisboa, onde o edifício de uma antiga gráfica é demolido para dar lugar a apartamentos de luxo. No entorno, a crise financeira e da especulação imobiliária.

Astrakan 79, de Catarina Mourão, enfoca um homem que aos 15 anos se mudou para a União Soviética e, 40 anos depois, decide contar pela primeira vez esta história ao seu filho, quebrando o silêncio que existia entre eles.

Em O Ouro e o Mundo, Ico Costa acompanha a aventura de um jovem moçambicano que decide viajar pelo seu país em busca de vida melhor nas minas de ouro do norte.

Outros três filmes contam histórias femininas. Confrontada com a possibilidade de perder sua avó, a cineasta Catarina Ruivo se volta para o cinema como uma possibilidade de mantê-la viva em Minha Avó Trelototó. Eu já tive oportuinidade de assistir a dois deles, O Que Podem as Palavras e Clandestina.

Três Marias portuguesas: O que Podem as Palavras

Em 1669 foi publicado na França um romance epistolar atribuído à freira portuguesa Mariana Alcoforado. As Cartas Portuguesas falavam de um amor desesperado por um oficial francês em passagem por Portugal. A autoria nunca foi inteiramente comprovada, mas o livro tornou-se clássico. Em 1991, foi adaptado ao teatro no CCBB-Rio com Carla Camurati no papel central e direção de Bia Lessa.

Entre as muitas influências e referências associadas ao romance, surgiram em 1972 as Novas Cartas Portuguesas, da lavra de três escritoras insubmissas. Juntas, reunindo-se duas vezes por semana durante nove meses, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa gestaram uma obra que colocava em xeque o pensamento patriarcal, a inferiorizção da mulher, o colonialismo português na África, os atentados do salazarismo aos direitos humanos, e por aí afora. O estilo mesclava cartas, poesia, ensaio, conto e romance.

Essa história exemplar do feminismo português – embora nenhuma das “Três Marias”, como ficaram conhecidas, usasse esse rótulo – é recontada por elas mesmas no irresistível documentário O que Podem as Palavras. Todas já são hoje falecidas, mas as diretoras Luísa Sequeira e Luísa Marinho tiveram o tino de gravar as entrevistas da poeta e professora Ana Luísa Amaral, também já falecida, com o trio em 2013.

É assim que elas relembram o processo de criação coletiva através de cartas individuais, a renúncia à autoria particular e o escândalo causado pela publicação numa época em que a ditadura salazarista vivia seus últimos suspiros. O livro foi acusado de pornográfico e ofendeu o machismo lusitano ao mencionar, por exemplo, que os homens eram ruins de cama. Proibido, era vendido clandestinamente nas livrarias portuguesas. Um processo judicial contra as autoras se estendeu até murchar dois anos depois, com a Revolução dos Cravos.

As lembranças que elas evocam são divertidas e esclarecedoras sobre o impacto do livro à época, tanto no meio literário quanto no político e no jurídico. Após o fim da ditadura, as três fundaram em Lisboa o Movimento de Libertação das Mulheres e tornaram-se de fato ícones feministas. No filme, elas têm a oportunidade de discutir sobre a situação das mulheres na atualidade e alinhavar algumas críticas ao próprio livro. Sempre em separado, uma vez que um rompimento posterior as deixou apartadas.

É uma pena que não tenha sido possível reuni-las num encontro. Em compensação, o filme inclui uma impagável participação da atriz Gilda Grillo, primeira responsável pela internacionalização das Novas Cartas Portuguesas e diretora de uma peça baseada na criação do livro e intitulada Parto. Gilda domina a narrativa com sua verve e fornece um desses momentos luminosos que fazem um documentário virar grande cinema.

Junto com fotografias e materiais de arquivo, as colagens e animações do artista Sama ajudam a contextualizar o sentimento dos anos 1970 e dão ao filme uma dinâmica bastante atraente. Eu gostaria de ver um pouco mais do conteúdo do livro, com suas múltiplas afrontas ao conservadorismo. De qualquer maneira, O que Podem as Palavras nos faz querer saber mais sobre essa história inestimável de criação literária e afirmação feminina. As três Luísas fizeram renascer as Três Marias com engenho e graça.

Memórias de uma falsificadora: Clandestina

Clandestina é um documentário com altas pretensões artísticas, mas que se revela vago e distanciado do seu assunto. Atores encenam em silêncio quase total o dia a dia de um grupo de jovens da resistência antifascista na segunda metade da década de 1950, ligados ao Partido Comunista Português. Em off, ouvimos o relato de Margarida Tengarrinha, artista plástica que entrou para a clandestinidade e se tornou especialista em falsificação de documentos para presos políticos em fuga.

Isolados num apartamento, Margarida, o companheiro Zé e a filha lidam com as limitações da vida à margem da sociedade. A clandestinidade é figurada também com o uso de máscaras extravagantes, provavelmente inspiradas em um folguedo da região. Quase sempre de maneira cifrada, a diretora Maria Mire insere animações de corpos e objetos “flutuantes”, e altera um eventual realismo com luzes coloridas e sons dissonantes.

Embora o relato se refira aos anos 1950, os atores têm aparência de hoje e lidam com notebooks, celulares e placas de vídeo, numa opção que algum tempo atrás se encaixava na chamada transvanguarda. Clandestina procura um diferencial na morosidade e no estranhamento. Pode agradar aos mais pacientes e interessados no tema.

 

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