Diante de Sudoeste, críticos pelo mundo afora têm citado Carl Dreyer, Andrei Tarkovski e Béla Tarr – só que com tempo bom, como ressaltou o resenhista da Variety. São influências reconhecidas por Eduardo Nunes em sua escolha por um cinema intensamente lírico, deliberadamente não realista e concebido com o rigor dos grandes mestres. É claro que isso não o isola completamente no cinema brasileiro – basta pensar em Limite, A Ostra e o Vento, Lavoura Arcaica –, mas sem dúvida o situa numa área de exceção. Cria em torno dele um espaço vago que caracteriza os objetos de fato singulares.
Não há aqui nem a procura sôfrega por “comunicação”, nem a sede juvenil de experimentação que dominam as principais correntes da cena contemporânea. E mesmo assim, poucos filmes podem ser mais comunicativos e experimentais do que Sudoeste. Poucos podem enredar e hipnotizar o espectador em sua fábula, ao mesmo tempo em que levam a linguagem a extremos de significação.
As admirações de Nunes não são “colas” de aprendiz nem fetiches de fã. São antes similaridades cultivadas há muito tempo. Nitidamente, esse primeiro longa-metragem de Nunes carrega as marcas de identidade de um autor coeso. Seus curtas têm o gene do mistério, a par de um jogo permanente de ocultação e revelação, além de uma temporalidade múltipla e invulgar. Leia sobre eles nesse ensaio que escrevi em 2004.
Singularidade na construção do tempo
A história de Sudoeste é um giro no tempo cíclico, um nó na chamada ordem natural das coisas. O filme começa com a morte de uma mulher no parto e termina com outra morte no mesmo leito, cerca de 24 horas depois. Nesse ínterim, outra personagem vive uma vida inteira, com os estágios de consciência evoluindo junto com o tamanho dos figurinos e infestando de mistério o povoado salineiro. A vida se repete ou é sempre diferente a cada volta da roda do tempo? Em que medida o que vivemos é destino e é resultado dos desejos de nossa imaginação?
“Só o tempo, só o tempo…”, rumina um personagem, referindo-se ao remédio para todos os males. Eduardo Nunes e seu corroteirista Guilherme Sarmiento criaram um tempo circular que se instala na aparente linearidade da trama. Duas velocidades diferentes de tempo correm em paralelo, sem que nada se abale na percepção dos personagens nem afete a compreensão do espectador. Há o tempo veloz da vida da segunda Clarice, há o tempo regular das outras pessoas. E há ainda o tempo macro da região (“o lago está morrendo, não tem mais sal nem peixe”). Os signos da passagem do tempo estão condensados em imagens como estas:
Singularidade no tratamento da imagem e do som
O diretor de fotografia Mauro Pinheiro Jr. optou por uma janela inusual de 3:66:1, enquanto o Scope normal é de 2:40:1. Parece que o exemplo mais próximo disso foi o Polyvision do Napoleão de Abel Gance (3:99:1), que envolvia a projeção de três rolos lado a lado. Há em Sudoeste uma certa semelhança, visto que frequentemente a tela parece se “dividir” em dípticos e trípticos, de acordo com as ações enquadradas. Vejam esses exemplos:
Essa horizontalidade acachapante, tendendo ao mural, não só privilegia as locações na Região dos Lagos, como amplia o horizonte de um conto sobre transcurso e percurso. É no caminhar que Clarice vive sua vida, compreende as coisas, sente as perdas, descobre o afeto, engravida ou pensa engravidar, e finalmente chega à velhice. As elipses temporais nessa andança estão entre as mais belas que o cinema pode criar.
Não é toda hora que vemos planos tão bem pensados e preenchidos como os desse filme, afora a beleza quase sobrenatural do preto e branco levemente granulado, com suas claridades diáfanas e contrastes dramáticos. Os movimentos lentos e o desvendamento progressivo das paisagens e situações criam uma linguagem absorvente, cheia de suspense, que restaura nossa confiança num cinema de imersão em plena era do elogio à superficialidade.
Esse é um filme de poucas palavras, povoado de silêncios e magníficas paisagens sonoras engendradas pelo vento. A música econômica mas poderosa de Cristiano de Abreu, Tiago Azevedo e Yuri Villar marca os momentos mais poéticos sem ênfases desnecessárias.
Singularidade na produção e exibição
Eduardo Nunes levou 14 anos para caminhar do argumento inicial (intitulado Erosão) ao lançamento de Sudoeste. Dispôs de um orçamento mirrado de apenas R$ 1 milhão, obtido através de um edital brasileiro e do fundo holandês Hubert Bals. Teve o projeto descartado em editais da Petrobras e do BNDES.
O filme já passou em mais de 30 festivais de 22 países e ganhou 12 prêmios, incluindo o da crítica internacional no Festival do Rio e outro que muito orgulho trouxe para Nunes: o de melhor direção no Festival Zerkalo, que homenageou os 80 anos de nascimento de Andrei Tarkovski na cidade russa em que ele nasceu. Lá o filme foi visto por Carlos Reygadas, Alexandre Sokurov e Nuri Bilge Ceylan. Um time no qual Eduardo Nunes, apesar de sua habitual timidez, deveria se sentir muito à vontade.
Nem isso nem a enxurrada de críticas elogiosas pareceu comover os distribuidores brasileiros. Sudoeste está sendo lançado por uma pequena e brava empresa, a Vitrine, e merece ser prestigiado de bate-pronto, para que não tenha uma vida tão curta quanto a de sua protagonista. No dia de sua aguardada estreia no Rio, abre em São Paulo uma grande retrospectiva Tarkovski na Mostra Internacional de Cinema. Mais uma singularidade mágica.
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