As gotas na lente

Grande parte das imagens do doc São Silvestre foram filmadas na chuva, com as gotas pousando nas lentes, escorrendo e deformando as imagens dos competidores da grande maratona do Reveillón paulista. Mas num dado momento, é a câmera que se detém, caprichosamente, sobre duas gotas que correm uma para a outra no gradil de um viaduto, se juntam e pingam, ao que o foco corrige para a rua molhada lá embaixo, onde os carros trafegam ao som de uma música clássica (acho que Parsifal, de Wagner). A sequência prossegue com diversas tomadas do trânsito paulista sacramentadas pelo som wagneriano.

Entre esses dois comportamentos – as gotas acidentais que turvam a imagem e as gotas capturadas com preciosismo fotográfico – é que Lina Chamie constrói seu filme. De um lado, a intenção de filmar a corrida de São Silvestre do ponto de vista dos corredores, isto é, deixando a imagem se deformar pelos efeitos da chuva, das passadas velozes, das oscilações de ângulo, das respirações ofegantes. De outro, o desejo de mostrar a cidade como objeto estético em planos bem elaborados, movimentos fluidos e elegantes, quadros invadidos pela luz da manhã ou pelos reflexos do asfalto molhado onde carros e motos deslizam como sabonetes.

São Paulo tem sido o cenário-personagem de filmes de Lina Chamie como A Via Láctea e Os Amigos. Enquanto naqueles a megalópole interferia na vida dos personagens humanos, aqui são os homens que ocupam a cidade na primeira manhã de 2011 e correm por ela em direção a uma espécie de êxtase: a chegada. Embora registre a partida de alguns grupos e a chegada de alguns maratonistas, São Silvestre não quer exatamente documentar a corrida como se fosse uma reportagem. Pretende ser uma experiência sensorial, uma imersão no abstrato da corrida. Para isso seis corredores levaram câmeras acopladas ao corpo, além do ator Fernando Alves Pinto, que correu com uma câmera voltada para seu rosto. Este recurso semificcional não acrescenta nada de especial ao roteiro do filme, que peca pela dispersão e pela repetitividade. O momento excepcional da corrida e os fluxos da rotina dos dias normais se alternam sem uma razão muito clara nem um efeito mais poderoso.

Notam-se ecos das sinfonias das cidades, que tanto alimentaram o documentarismo dos anos 1920. O uso de trechos de Wagner, Saint-Saens, Mahler, Scriabin e Sibelius, além de testemunhar o apego de Lina Chamie à música clássica, quer emprestar caráter épico à corrida e pátina poética ao urbanismo e à arquitetura paulistana, vista em alguns de seus marcos mais célebres. O desenho sonoro dos craques Luiz Adelmo e Eduardo Santos Mendes enfatiza esse aspecto “musical” do filme e destaca alguns sons expressivos da cidade.

São Silvestre desperta curiosidade por sua opção experimental e sua recusa ao modelo meramente informativo, mas deixa um gosto de prova não concluída. A meu ver, o interesse pela cidade e pela maratona se concretizou de maneira superficial e estetizante.

4 comentários sobre “As gotas na lente

  1. Carlos A. Mattos, tudo bem! Meses atrás li sua crítica sobre um dos melhores filmes do ano (aqui e lá fora…) “Paulo Moura – Alma Brasileira” de Eduardo Escorel e não lhe dei um prometido retorno. Saiba que dos pouquíssimos filmes que assisti entre 2012/13 , no caso docs. musicais, esse mais ” A Musica segundo Tom Jobim” de N. P. dos Santos e “Jards” de Eryk Rocha, são inegavelmente os que por ex., o maestro Julio Medaglia certamente já incluiu ( ou incluirá) em alguma cartilha para seus alunos e/ou músicos (quer dizer, a luta dele é para toda rede de ensino…). Enfim, são deslumbrantes!
    “São Silvestre” confiro já! E, daqui para frente espero ser mais atencioso contigo. Pois afinal vc. instiga, estimula, enriquece qualquer cinéfilo ou realizador que se preze. Ótimo Réveillon!

  2. O filme estreou ontem. O que li das criticas até agora foram unânimes em rasgados elogios. Bem, a julgar por sua (mais uma vez) competência, que está sendo meio discordante vou imediatamente mudar a ordem do que preciso assistir (antes que saiam de cartaz, etc.). Até porque Chamie é no meu entender umas das melhores cineastas em atividade – mesmo que até então seja “muito ignorada por muitos”.

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