Duas notas sobre HOMEM IRRACIONAL
- Como em todos os filmes de Woody Allen sobre personagens intelectuais, não sabemos bem se ele está tratando questões filosóficas em chave de banalidade ou se está elevando o banal à potência da filosofia. Há um movimento constante no sentido de colocar os princípios da moral em atrito com a realidade prosaica e ver esta última vencer com alguns corpos (literalmente) de vantagem. Vence também a intuição sobre o intelecto, o que é parte da sua receita de sucesso. “Homem Irracional” também procura a existência suja que contradiz a pureza dos livros. O professor de Filosofia vai “adaptar” seu apostolado e sua ética (o mundo perfeito sem mentira imaginado por Kant) para recobrar o prazer de viver. O assassinato vira, então, uma providência de justiça e um passaporte para a vida, pelo menos até que o castigo venha cobrar seu preço.
2. Aparentemente, é o acaso que responde pelas reviravoltas da história, a partir da conversa alheia entreouvida no bar. No entanto, a escritura de Woody costura esses acasos com a habilidade de um tecelão. É Jill, a ética, quem atrai Abe para a conversa e, em consequência, para tudo o que vai se seguir. Por outro lado, é Abe, o precavido, quem fornece a Jill o objeto que vai selar seu destino na penúltima cena. Nessa troca de gestos que, afinal, contrariam a moral de cada personagem reside a inteligência do roteirista. Sem contar com o fator Rita, a professora que anuncia e precipita boa parte dos acontecimentos. Se o acaso é confeccionado em algum lugar, o laptop de Woody Allen é um deles.
Criar uma moldura contemporânea talvez não seja a melhor ideia do mundo para recontar a história do Pequeno Príncipe. Pode até ser uma das mais gratuitas e despropositadas. Quem assume o protagonismo é a menina que faz amizade com o velho aviador da casa ao lado e ouve dele o relato sobre o menininho do deserto. Com isso ela consegue uma rota de fuga do regime de eficiência e planejamento imposto pela mãe. O planeta poético do PP vai se opor, então, ao mundo dos negócios e da produtividade total, numa mensagem de valorização dos afetos sobre os êxitos. É preciso falar com a linguagem e o referencial de hoje, uma vez que os de Saint-Exupéry estariam defasados. No fundo, O PEQUENO PRÍNCIPE de Mark Osborne mobiliza uma série de dicotomias. Contrapõe a estética hollywoodiana da computação gráfica com a técnica stop motion, mais ligada à tradição europeia; a lógica americana do espetáculo de ação com as sonoridades francesas nas músicas e nos diálogos. Faz isso com muita competência e bastante graça na maior parte do tempo. Mas não afasta a sensação de coisa arbitrária, especialmente quando reencontramos os personagens do livro – inclusive o principezinho – vivendo numa distopia cinzenta que carece de maior imaginação.
Rolou um certo desapontamento com EXPRESSO DO AMANHÃ. Creio que Bong Joon-ho mais se amoldou do que se impôs às regras do blockbuster de ação internacional. Naquele trem autossustentável que transporta os últimos sobreviventes 17 anos depois que o planeta se congelou, reproduz-se o sistema de classes, assim como as justificativas de sua existência para preservar a vida na Terra. O trem é uma pirâmide horizontal e uma metáfora da razão cínica. Nada que já não tenha sido visto, em diferentes formatos, em parábolas futuristas como Metrópolis, No Mundo de 2020 e Blade Runner. Mas esses são clássicos verdadeiros, enquanto “Snowpiercer”, baseado numa graphic-novel francesa, limita-se a replicar uns tantos clichês e exercitar a ultraviolência em ritmo crescentemente monótono. Embora visualmente exuberante, é estável demais para transmitir a sensação de um trem em movimento, e luxuriante demais para sugerir um ecossistema autônomo. Enquanto os párias revoltosos avançam da cauda do trem em direção à locomotiva, como se percorressem uma estrada para enfrentar o Mágico de Oz, o filme vai dissipando sua premissa conceitual em troca de estilemas do filme de ação. A passagem mais tipicamente coreana é o vagão-escola, onde transcorre uma aparente sátira à propaganda política da Coreia do Norte. Tilda Swinton, em mais uma caracterização diabolicamente cômica, é outro elemento que retira o filme de sua hiperatividade morosa e às vezes verborrágica.