Notas rápidas sobre ATIRARAM NO PIANISTA, SAMSARA e O ASSASSINO
Dois sentimentos opostos me assaltaram enquanto via ATIRARAM NO PIANISTA (They Shot the Piano Player), de Fernando Trueba e Javier Mariscal. De um lado, a satisfação de ver a história do pianista Francisco Tenório Júnior tão bem investigada num animadoc absolutamente cativante. De outro, o constrangimento por não ter sido um cineasta brasileiro a empreender esse resgate. É claro que houve Rogério Lima com seu curta “Balada para Tenório Jr.” e Walter Lima Jr, que abordou o caso tangencialmente em “Os Desafinados”. Mas nada chega aos joelhos do filme de Trueba e Mariscal.
Trueba fez uma pesquisa exaustiva, na qual o jornalista estadunidense fictício Jeff encarna seu alterego. As entrevistas foram rotoscopadas (desenho feito em cima das imagens reais), preservando todos os detalhes da ocasião. Cenas de flashback foram recriadas, assim como as imagens supostas de Tenório ao piano e em família. A animação engole tudo: entrevistas, imagens de arquivo, cenas de filmes, etc. O filme é encantador por exalar um grande amor pela Bossa Nova, o samba-jazz e o Rio de Janeiro de então. Ao mesmo tempo, é um documento político que relembra as ditaduras latino-americanas das décadas de 1960 e 70, bem como a Operação Condor, na qual generais no poder em vários países colaboravam para perseguir e matar seus opositores. Foi num ensaio para isso que Tenório Júnior acabou morto com um tiro na cabeça numa prisão argentina. Provavelmente por engano, como hoje faz a milícia carioca em quiosques da Barra.
Esse novo filme do espanhol Lois Patiño não deve ser confundido com o homônimo painel planetário de Ron Fricke, 2011. Aqui temos uma história em dois blocos sobre reencarnação. No primeiro, passado entre monges budistas do Laos, um menino lê o Bardo, livro tibetano dos mortos, para uma idosa a fim de prepará-la para o que vem depois da morte. No segundo, temos uma menina muçulmana e sua cabrita de estimação vivendo no arquipélago de Zanzibar, na Tanzânia, entre pescadores e mulheres colhedoras de algas marinhas para a indústria de sabonetes.
É tudo muito bonito e contemplativo, filmado com película de 16mm, que gera uma imagem mais densa, levemente instável e de cores mais abrasivas. O fiapo de ficção se mistura com as muitas cenas documentais com as gentes de Luang Prabang e de Zanzibar.
Mas o que mais chama atenção é a proposta de oferecer ao público uma experiência de transição entre a morte da idosa laosiana e sua reencarnação na África. A tela se apaga e o espectador é solicitado a fechar os olhos por três minutos de silêncio até que o som comece a ressurgir. Seguem-se, então, mais 12 minutos de pulsações cromáticas e sonoras, nas quais nossas retinas podem distinguir (ou produzir mentalmente) diversas formas. A ideia é compartilhar conosco o “bardo”, ou estado intermediário entre uma e outra encarnação da personagem. Não é aconselhável para quem se afeta pela estroboscopia.
Talvez esse SAMSARA estivesse mais afeito a um tempo em que as pessoas curtiam um baseado vendo certos filmes para “viajar” com eles. Mas não é só isso. A narrativa rarefeita e a delicadeza da realização com atores não profissionais fazem um filme realmente fora do tempo. E alheio às expectativas comuns quanto ao cinema fantástico.
É preciso investigar melhor a relação entre idade e cinefilia. Eu, por exemplo, acho que envelheci demais para certo tipo de filme. É o caso de O ASSASSINO (The Killer), de David Fincher, que está nos cinemas e na Netflix. Como me relacionar com aquela monotonia insuportável de uma máquina mortífera repetindo os mesmos cacoetes durante duas horas? Como aceitar que esse assassino sem nome viaje pelo mundo trocando de identidades como quem troca de camisa, gastando dinheiro a rodo, abrindo todas as portas e esperando que as vítimas tagarelem um bocado antes de enfiar uma bala em suas cabeças? Como apreciar essa visão de domínio estadunidense que acessa tudo, antecipa tudo e acerta tudo?
Ok, a história se desenrola a partir de um erro inédito na carreira do matador profissional. Mas o erro serve apenas para ele demonstrar em seguida que é foderoso no projeto de vingança pelo ataque à namorada (pobre Sophie Charlotte com sua ponta inexpressiva). Como suportar o ar cool-impiedoso de Michael Fassbender encarnando aquele mecanismo frio e metódico como se o mundo inteiro estivesse sob seu controle? Ok, é tudo ficção de gênero; é tudo para elogiar a tecnologia, mostrar expertise técnica e fazer merchandising da Amazon. O que acontece é que talvez esse filme tenha confirmado que, definitivamente, minha juventude ficou para trás.




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