Ecos das chanchadas e dos marginais na teatralização de novos cotidianos
(Ensaio publicado originalmente na revista Filme Cultura nº 56)
Existe no cinema brasileiro contemporâneo uma tensão entre a busca de novos caminhos e a referência a formatos do passado; entre a pulsação de vida que anima certos filmes e o desejo de construir marcas estéticas reconhecíveis. Nessa tensão, algo que se pode aferir como concreto e visível é o recurso frequente à teatralidade. Não me refiro aqui a uma relação explícita e nominal com o teatro, esta também bastante frequente, como analisado em outros artigos desta edição. Falo de uma qualidade teatral que apenas contamina a estrutura e a enunciação de tantos filmes, fazendo com que a linguagem cinematográfica muitas vezes se condicione ao jogo entre atores e espaço cênico, ou mesmo potencialize esse jogo pelos efeitos da duração e da montagem.
Podemos localizar duas tendências predominantes numa retomada de sentidos de teatralidade próprios de outros momentos históricos do cinema brasileiro. Enquanto um segmento do cinema mais voltado para a invenção e a experimentação retoma signos e comportamentos cênicos do Cinema Marginal das décadas de 1960 e 70, filmes de ambições mais comerciais assumem seu parentesco com a chanchada dos anos 1930 a 60. Cabe ressaltar que essa separação não é rígida, uma vez que muitos procedimentos da chanchada foram reabilitados pelos ditos marginais e hoje se fazem igualmente presentes em filmes de pretensões bastante distintas. A teatralidade é um deles.
Essa nova-velha teatralidade envolve diversos traços gramaticais a partir da concepção das cenas e de sua participação na economia narrativa dos filmes. De maneira geral, ela se manifesta no entendimento da cena não como recorte de uma realidade em pleno fluxo, mas como situação vivida num palco virtual, cujos limites são vistos claramente. Limites não apenas espaciais, mas também temporais, uma vez que a cena contém uma semiautonomia, relacionando-se com as outras de maneira rarefeita, poética, indireta.
Vejamos os exemplos de dois road movies recentes: Estrada para Ythaca, dos Irmãos Pretti e Primos Parente, e A fuga da mulher gorila, de Felipe Bragança e Marina Meliande. Por mais que o gênero imponha sua narratividade por natureza progressiva, o movimento (a história) importa bem menos que as grandes pausas (situações), quando a ação se exerce mais como performances isoladas do que como elos de uma corrente dramática. Há em cada uma dessas grandes pausas uma unidade de tempo e espaço que remete à cena teatral, mesmo quando não se constituem de planos-sequência. Em Ythaca, tanto a parada para almoço numa clareira quanto a conversa com dança e música diante dos faróis do carro (que transformam um trecho de estrada escura em palco frouxamente iluminado) fazem do quadro uma espécie de tableau vivant, com atores reunidos em esquetes assumidamente teatrais.
A reunião de atores dentro do quadro, quase sempre em posição frontal, era exercida com frequência tanto nas chanchadas quanto nos filmes marginais. Nas primeiras, valia a herança do teatro de revista, no qual os atores se dirigiam ambiguamente uns para os outros e para a plateia. A clássica comédia Aviso aos navegantes (Watson Macedo, 1950), por exemplo, trazia arranjos cênicos que “justificavam” essa frontalidade: as conversas no convés do navio, num balcão ou na plateia dos shows, transcorridas inteiras num único plano com todos os participantes dentro do quadro. Poucas cenas, as mais funcionais ou de correria, eram decupadas em diversas tomadas. A maioria das sequências compreendia alguma performance musical, número de mágica ou gague vistos em sua inteireza.
Esse modelo tem sido reproduzido por neochanchadas como Billi Pig, A mulher invisível e As aventuras de Agamenon – o repórter, ou mesmo por filmes que buscam resgatar uma teatralidade nostálgica, como O palhaço, ou a alma do vaudeville, como Elvis e Madona. Também aqui o formato da sucessão de performances mais ou menos estanques substitui a fluidez narrativa das comédias mais naturalistas.
Nos filmes de diretores jovens identificados com o cinema de invenção, percebe-se o que Cezar Migliorin atribui a uma “crise do roteiro”. E aqui cabe citar um trecho de seu ensaio Por um cinema pós-industrial (Revista Cinética, fev. 2011):
“O desconforto com o modelo industrial é algo que está nos filmes, na organização dos sets, na dimensão processual das obras que com frequência têm rejeitado a ideia de continuidade entre projeto e produto, como na lógica industrial. Se pensarmos em alguns importantes cineastas contemporâneos, como Pedro Costa, Abbas Kiarostami, Eduardo Coutinho, Miguel Gomes, Apichatpong Weerasethakul, Jia Zhange-ke, todos eles teriam sérios problemas para aprovar projetos e terem suas contas aceitas na grande maioria dos editais brasileiros, uma vez que trabalham o filme dentro de um processo de construção em que o projeto é composto de intenções, encontros, performances, compartilhamentos – e não de roteiro e realização, como prevê a lógica industrial.”
Como vários desses longas são feitos à margem dos editais, a preocupação com a escritura se dilui em benefício do momento da filmagem. As cenas são então concebidas como algo que fica entre a experiência (vivida) e a experimentaçāo (encenada). O resultado são filmes compostos por uma sucessão de performances. Os residentes, de Tiago Mata Machado, com seus esquetes godard-debordianos sobre guerrilha e poder, é talvez o exemplo mais acabado desse tipo de filme “espatifado contra a parede” (no feliz dizer do crítico Fábio Andrade). A recusa à progressão e à continuidade dramática transfere a ênfase para o fragmento, a cena estanque. É claro que nem todos são filmes em cacos. Nem todos enfocam situações nas vidas de seus personagens de maneira tão pouco linear quanto O céu sobre os ombros (Sérgio Borges), Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro) e Transeunte (Eryk Rocha). Mas, ainda quando há cronologia e lógica de causa e efeito, como em Riscado (Gustavo Pizzi) e Os monstros (Pretti-Parente), a força das unidades e a sua relativa completude se impõem sobre a tênue linha que as une.
Os residentes, história de um grupo de jovens atores encerrados numa casa prestes a ser demolida,enfeixa uma série de características extremas desse modelo. Seu diretor admitiu que cada momento deveria ter “a sua autonomia em relação ao todo”. E acrescentou: “Mesmo porque não quero nem consigo filmar cenas meramente funcionais”. Esse princípio é levado para dentro do filme através da fala de um personagem que soa como manifesto. Ele diz que “o jogo deve tomar conta da vida inteira” no rumo de uma “construção experimental da vida cotidiana”, composta de “momentos perecíveis deliberadamente preparados” e cujo êxito é seu “efeito passageiro”.
Tanta rarefação de intenções e resultados pretende, de alguma maneira, apagar os limites entre arte e vida, incorporando elementos de uma à outra – algo aliás muito caro à performance art. Estamos então no terreno da teatralização da vida e da distensão da arte para fora dos limites da economia narrativa. A performance se aproxima do ritual, em que o tempo é aquele que a cerimônia requer, não o que lhe seria imposto por outras razões. Um casal de atores que são cônjuges de fato discutem sua relação entre lágrimas e depilações numa sequência de 15 minutos de Os residentes. Os quatro atores de Os monstros entregam-se a uma igualmente longa performance de improvisação jazzística nos minutos finais do filme. Outra longa cena de jazz aparece em As horas vulgares (Rodrigo de Oliveira e Vitor Graize). O jazz, por sinal, consolida esse ideal de unidade na improvisação, permitindo que o inconsciente do grupo aflore e seja assimilado pelo Outro, que é a plateia.
Nos rituais da performance, a confusão entre atores e personagens é uma constante. Isso está na raiz das experimentações de vários desses filmes, com destaque para A falta que nos move, transposição para a tela da aventura de criação teatral proposta por Christiane Jatahy. O fato de os atores se tratarem por seus próprios nomes, levarem à cena fragmentos de suas realidades e incorporarem o acaso das filmagens cria uma área cinza na representação, uma hibridez de registros já bastante praticada nas combinações de ficção e documentário. Quem diante de filmes como esse lembra-se do trabalho de Jorge Bodanzky, Orlando Senna e João Batista de Andrade nos anos 1970 (Iracema, Gitirana, Diamante bruto, Caso Norte, Wilsinho Galileia) certamente está pensando na mescla de procedimentos e na disposição para atirar o filme na poeira da realidade. E terá mais razão ainda em remontar ao cinema marginal, que forneceu as bases para tais experiências.
O próprio Andrade, com Gamal, o delírio do sexo (1970), assim como José Agrippino de Paula em Hitler Terceiro Mundo (1968) e Rogério Sganzerla muito especialmente em Sem essa, Aranha (1970), calcou seus filmes na sucessão de performances, boa parte delas ocorridas nas ruas, diante do olhar surpreso dos populares. A intervenção no espaço público era então uma estratégia de produção e autoproteção (o desembarque súbito da equipe numa praça ou numa favela, a filmagem improvisada e a retirada rápida antes que a polícia desse as caras). Ao mesmo tempo, era uma afronta à tentativa do Cinema Novo de produzir uma representação racional do país. Isso numa época em que mesmo Glauber Rocha aprofundava sua veia performática com Câncer (1972) e depois Di (1977) e A idade da terra (1980). Vale citar a seguinte passagem do ensaio Encontros com a sifilização brasileira, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior (UFRN) a respeito de Orgia ou o homem que deu cria (João Silvério Trevisan, 1970):
“A maneira como se filma, os temas e personagens que se escolhe, os gestos que os personagens realizam, a cenografia, a maquiagem, as vestimentas, as falas, os corpos dos atores, as performances que realizam, compõe (sic) não apenas a mensagem estética do filme, como sua mensagem política, uma micropolítica, atenta para as revoltas individuais, microscópicas, cotidianas, aquela que se passa ao rés dos corpos, aquela que provém do desejo, aquelas práticas que instauram novas relações, que abrem as pessoas para linhas de fuga, para viagens e miragens, filmes como se fossem alucinógenos, que dão acesso a uma nova forma de perceber e viver a realidade”.
Algo desse ideário estético-político comparece em filmes como Os residentes ou A alegria, este de Bragança e Meliande, embora reconfigurado por uma preocupação de acabamento, construção de simetrias etc., traços estranhos à maioria dos marginais. A provocação direta e o tom agressivo de antes foram substituídos por alusões mais poéticas e uma enunciação lacônica, às vezes mesmo depressiva. Tampouco há mais a deliberada intervenção no real coletivo. Quando a rua ou a estrada aparecem nesses novos filmes, são espaços ermos percorridos apenas pelos personagens. São como palcos para suas atuações. A performance tem lugar quase sempre entre as paredes de casas, apartamentos e galpões, refletindo talvez a obsessiva autorreferência, o confinamento dos temas a grupos restritos, geralmente de amigos.
A ideia dos companheiros que se reunem para uma festa, uma viagem ou uma pequena aventura qualquer se repete em todos os exemplos citados até aqui, mais As horas vulgares e No lugar errado (Pretti-Parente). Um componente erótico chega a se insinuar nessa onda de performances mútuas, nessa troca de estímulos em busca de sintonia, clímax e catarse. O objetivo de “gozar junto” não é estranho à fenomenologia das performances grupais. Enquanto isso, o mundo lá fora permanece num eterno extracampo.
Em A falta que nos move há mesmo o comentário de que o apartamento era algo apartado da realidade. Ou seja, na mesma medida em que esses filmes procuram colar a arte à vida privada pelos caminhos da teatralidade, reconhecem e enfatizam sua distância de qualquer comprometimento com uma representação do real para além das fronteiras daqueles aposentos.
Uma série de marcas da teatralidade dos anos 1970 prevalece, contudo, no cinema de invenção contemporâneo. Além da frontalidade e da reunião de personagens em quadros (tableaux), há um frequente recurso às máscaras e fantasias, o que associa os filmes de Bragança e Meliande ao Bang bang de Andrea Tonacci (1970) e a Hitler Terceiro Mundo, apenas para citar alguns. A performance corporal ou musical assumida como cena teatral dentro do filme é outro traço a ligar os dois tempos históricos – ou mesmo os três, se considerarmos certas interpretações paródicas como herdeiras do espírito das chanchadas.
Típico da estética das performances é também a consideração do movimento dos atores como geometria dentro do espaço cênico. A par de toda deambulação sem rumo muito definido, é comum nesses novos filmes vermos corpos que cortam o quadro de uma ponta à outra, desenham círculos no seu perímetro ou caminham em direção à câmera até preencher todo o espaço visual. O plano concebido como sucedâneo do palco (frontal, simétrico e performático) é também recorrente nos filmes dos Pretti-Parente, em Os residentes e em Djalioh, o Flaubert-performance de Ricardo Miranda.
Por vezes a performance deixa de ser um recurso expositivo e se assume como ato performático de verdade. As apresentações da mulher gorila, os números musicais dos Pretti-Parente e de Desassossego (filme das maravilhas) (realização coletiva coordenada por Bragança e Meliande), as performances corporais de Os residentes, o choro coletivo que encerra A falta que nos move são momentos em que se cristalizam e radicalizam os princípios que regem os filmes inteiros.
Filmes de performance não se restringem ao ramo puramente ficcional. Aí se situa também a crescente inflexão da filmografia de Eduardo Coutinho para o campo do “depoimento encenado”, com a incursão explicitamente teatral de Moscou, que certamente inspirou, entre outros, Mentiras sinceras, de Pedro Asbeg. São eminentemente performáticos filmes como Estamira (Marcos Prado) e híbridos como Terra deu, terra come (Rodrigo Siqueira), Girimunho (Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina), Avenida Brasília Formosa e Uma longa viagem (Lúcia Murat). Isso sem falar nos documentários que tratam da performance em si e dela se imantam, a exemplo de Pan-cinema permanente (Carlos Nader) e dos filmes de Paula Gaitán sobre/com as atrizes Maria Gladys (Vida) e Marcélia Cartaxo (Agreste).
Eternizar o transitório é uma das mais nobres atribuições do cinema. Mas o que presenciamos nas telas hoje é bem mais que isso. É o resgate de uma teatralidade que o cinema sempre vai buscar quando quer contestar ou desviar-se do ilusionismo transparente. É uma volta ao corpo, ao sentido de cena construída e, em última análise, ao primado da fantasia.