O ÚLTIMO POEMA DO RINOCERONTE é mais um grande filme iraniano. Bahman Ghobadi é o diretor do também ótimo “Tartarugas Podem Voar” – e numa cena desse novo filme ele confirma sua obsessão com essa possibilidade. No centro da história está um poeta curdo-iraniano (inspirado em personagem real) que ganha liberdade após 30 anos de prisão e, dado como morto há mais de 20, sai à procura da mulher (Monica Bellucci). Ela vive agora em Istambul e tem uma profissão misteriosa. Ghobadi narra esse possível reencontro com uma parcimônia dramatúrgica admirável, mas também com um grande apetite poético para quebrar a realidade em dois tempos e em reflexos abundantes que exprimem os ecos de memória e as lacunas de conhecimento de Sehel, o poeta. Uma segunda história de amor, igualmente dolorida, tangencia a de Sehel, insinuando-se na ruptura política da revolução islâmica, em 1979, e fazendo com que o filme alcance um registro emocional poderoso. Às vezes fica a impressão de um rebuscamento narrativo exagerado para a simplicidade da história, mas a beleza ininterrupta das imagens acaba compensando essa tendência ao efeito. Uma curiosidade: o ator protagonista, Behrouz Vossoughi, é radicado nos EUA, onde costuma fazer papéis de terrorista.
Não é fácil morrer ou estar morto no cinema coreano. Hitchcock já havia explorado essa dificuldade em O Terceiro Tiro e Festim Diabólico. A comédia policial UM DIA DIFÍCIL, em cartaz somente no Cine Joia, tem elementos hitchcockianos levados ao paroxismo típico da produção de Seul. Nesse fatídico dia do título, um detetive tem que lidar com o funeral da mãe, um atropelamento casual, a ocultação de um cadáver, as suspeitas que recaem sobre ele, as chantagens dos colegas corruptos e ainda as ameaças de uma testemunha que pode incriminá-lo. Ou seja, os ingredientes típicos da receita coreana de clichês de ação, violência maníaca e humor negro, tudo servido naquele tom meio alucinado e maquínico que faz os atores se assemelharem a bonecos movidos por controle remoto. Para quem tolerar os exageros e o ritmo incessante, há a compensação de situações cômicas eficientes e a técnica ágil que entretém todo o tempo. Entre as matrizes perceptíveis no filme de Kim Seong-hoom estão, além de Hitchcock, os Irmãos Coen (especialmente “Gosto de Sangue”), “Missão Impossível” e as extravagâncias de John Woo.
O CONTO DA PRINCESA KAGUYA é uma animação anti-Disney e anti-Pixar por excelência. A começar pela técnica, baseada na estética da pintura japonesa, levada a cabo artesanalmente pelo diretor Isao Takahata e sua equipe durante oito anos no Studio Ghibli. As cores suaves e as formas “antiquadas” em nada se parecem com a animação de massa (refiro-me a público, não à massa de modelar) produzida em computadores. O ritmo, pausado, com longos diálogos e canções melancólicas, tampouco se assemelha ao do modelo americano. E a história, nem se fala. A lenda do cortador de bambu que encontra uma menina em miniatura num broto de bambu e a cria como princesa encerra várias mensagens pouco afeitas à auto-ajuda onipresente hoje em dia. A ambição desmedida do pai adotivo, a desonestidade dos pretendentes ao coração da moça, a maldição da nobreza comprada pelos novos-ricos, tudo isso culmina numa denúncia da utopia representada pelo mundo perfeito dos seres lunares. Enquanto se depara com uma história de separação, triste e sem remissão, o espectador compreende que as imperfeições são necessárias à felicidade, e que só a convivência da dor com a alegria fazem a verdadeira vida. Não sei o que as crianças vêm achando dessa história que se desenrola por 137 minutos sem afagos sentimentais, sem hiperatividade e sem os penduricalhos do 3D.
A VIAGEM DO BALÃO VERMELHO, de Hou Hsiao-Hsien (2007), foi lançado somente em DVD no Brasil. É um filme de rara delicadeza e descompromissada poesia, que flui como um balão de gás nos caprichos do vento. Para homenagear o clássico média-metragem “O Balão Vermelho”, de Albert Lamorisse (1956), o chinês HHH não só reedita o balão sobrevoando Paris, como reúne outras referências (música, quadro, grafite) à presença do tal “ballon rouge” na cultura parisiense. Dessa vez, o menino não está sozinho. Compartilha as visões do balão com uma babá chinesa metida a cineasta (Song Fang, que em 2012 dirigiria “Memories Look at Me”). É como se dividissem o mesmo sonho, ele pela fantasia, ela pela arte. Em contraste com o plano onírico dos dois, está a mãe do garoto (Juliette Binoche), uma mulher atarantada com assuntos bem concretos como o trabalho, o ex-marido, uma filha distante e um locatário caloteiro. Ela é dubladora de teatro de bonecos, eco de outro filme de HHH, “O Mestre das Marionetes”, mas também uma variante do balão movido por um efeito cuja origem não se vê. O filme inteiro, na verdade, se compara àquela esfera escarlate que flutua e desaparece para ressurgir em outro momento e espaço, sem função nem objetivo, mas que carrega inevitavelmente o nosso olhar embevecido. O estilo casual e diáfano do diretor, as imagens rebatidas em reflexos, a extrema naturalidade da encenação nos levam para bem acima do chão, numa viagem sem mapas.
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