Guzmán e Oliveira na primeira pessoa

A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo pela primeira vez trouxe um pequeno recorte de atrações para o Rio, no Espaço Itaú de Cinema. Escrevi sobre alguns filmes nas redes sociais. Abaixo, minhas considerações sobre O BOTÃO DE PÉROLA, de Patrício Guzmán, que passa hoje (quarta, às 19h), e VISITA OU MEMÓRIAS E CONFISSÕES, o testamento precoce de Manoel de Oliveira exibido ontem (quarta).

É inevitável que O BOTÃO DE PÉROLA (“El Botón de Nácar”), atração de hoje (quarta) na Mostra de SP no Rio, alimente altas expectativas em quem viu “Nostalgia da Luz”. Patricio Guzmán passa do deserto às águas em sua pretendida trilogia sobre o destino dos chilenos. O formato do filme-ensaio, narrado pela voz cálida e compassada do diretor, lhe permite lidar com materiais diversos – entrevistas, arquivos, reconstituições, imagens computadorizadas – e transitar com bastante liberdade entre temas distantes, mas conectados por paralelos históricos e similitudes poéticas.

Nesse caso, dois misteriosos botões encontrados no oceano levantam uma série de evocações e especulações a respeito do extermínio dos povos indígenas (no que o filme se aproxima bastante do “500 Almas” de Joel Pizzini) e do assassinato de ativistas de esquerda durante a ditadura Pinochet, cujos corpos eram atirados no mar. Guzmán adiciona informações científicas, ressonâncias míticas e lembranças pessoais a seu discurso, tendo sempre a água como mediadora entre épocas e espaços longínquos. O Chile, com seus 4.300 km de litoral, não conseguiu manter intimidade com o mar.

Encontramos aqui o mesmo sentido de maravilhoso das imagens como no filme anterior, mas nem tudo se repete com a mesma eficácia. Algumas conexões soam frágeis demais, quase forçadas, como a dos botões do título. E o estilo solene que nos encantou em “Nostalgia da Luz” agora pode soar um tanto reiterativo e exaurido. Ainda assim, que se diga, é um filme belíssimo.


VISITA OU MEMÓRIAS E CONFISSÕES é um objeto raro na história do cinema. Manoel de Oliveira filmou esse doc autobiográfico em 1982, aos 73 anos. Pensava talvez num testamento, achando que não viveria muito tempo mais. Pediu que nunca o exibissem antes de sua morte, embora conste que o tenham desobedecido por ocasião de uma retrospectiva na Cinemateca Portuguesa em 1993. A morte ainda demoraria 34 anos para colher Oliveira, que se foi aos 106. Agora o filme circula amplamente. E é dos mais bonitos de sua carreira.

Concentra-se na casa do Porto onde ele vivera por 40 anos e acabara de vender para saldar dívidas. As dificuldades, saberemos depois de sua própria boca, vieram por conta da revolução de 1974, em cujo rastro sua família perdeu a fábrica herdada do avô. Mesmo a casa fora seguidamente oferecida ao patrimônio público, sem sucesso. Manoel reprime o quanto pode o tom de queixa para dar lugar a lembranças da família, daquela casa e da propriedade de campo, a Portelinha. Ele fala formalmente para a câmera, apresenta fotos de parentes, projeta pequenos filmes familiares e insere uma reencenação de sua prisão pela polícia da ditadura em 1963. Em outras aparições, discorre sobre temas diversos: o elogio da pureza enquanto resistência às “tentações do Mundo e da carne”, o seu fascínio pela virgindade feminina, a visão tradicionalista do papel da mulher, o destemor diante da morte (“A ideia da morte torna a vida mais apreciável”) e a religiosidade (“Sou um homem de muitas dúvidas e de muita fé”).

Enfim, ali está o que sempre me intrigou na figura de Oliveira: o homem conservador em contraste com o artista inovador. Prova desse último é a estrutura do filme, onde a casa é apresentada por ele e também pela câmera subjetiva de um casal de intrusos, de quem só ouvimos as vozes dos atores Teresa Madruga e Diogo Dória dizendo um texto escrito especialmente por Agustina Bessa-Luís. Essa perspectiva exógena dos visitantes misteriosos contrasta propositadamente com as falas íntimas do próprio Oliveira, compondo a visão de uma casa que já foi do cineasta mas agora é de estranhos. Uma casa vazia, ampla e um tanto gasta, mas por isso mesmo repleta de memórias e confissões.

Manoel fala relativamente pouco de cinema e muito de sua vida e ideias. Por alguma razão, quis deixar esse depoimento guardado nos cofres da cinemateca. Provavelmente não imaginava que seria por tanto tempo. Suas últimas palavras no filme podem ficar como um epitáfio: “Lembro-me de mim… E sumo-me”.

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