Um filme “de qualidade”

Quando convidou Selton Mello para levar às telas sua novela Um Pai de Cinema, Antonio Skármeta certamente não imaginava que o diretor fosse levá-la tão longe em O FILME DA MINHA VIDA. É mesmo notável a autonomia com que Selton se apossou do material, alterando radicalmente alguns dados – sobretudo as revelações mais melodramáticas – e inserindo elementos bastante alheios ao livro, como a importância sentimental dos veículos de duas rodas. E ainda aumentando e tornando mais complexo o papel original do moleiro, vivido pelo próprio diretor. Skármeta, em sinal de plena aprovação, aparece pontificando num diálogo no bordel.

Independente das ousadias, o filme mantém uma essencial fidelidade na atmosfera nostálgica e evocativa de uma aldeia serrana nos anos 1960. Não uma aldeia gaúcha historicamente fiel, mas flambada na chama das memórias cinematográficas. Ora chegamos perto demais de Cinema Paradiso, ora somos aproximados de clássicos hollywoodianos como Shane ou europeus como Amarcord. O glamour às vezes exagerado (no bordel, por exemplo) atende a um desejo de trabalhar na esfera desses mitos construídos através da cinefilia. A magnífica fotografia de Walter Carvalho, repleta de ocres, dourados e retalhos de sombra, remetem de pronto a essa dimensão.

Tony Terranova (Johnny Massaro) sofre com a ausência do pai (Vincent Cassel), um francês que sumiu do mapa. Sua amizade com o bruto Paco (Selton), um simulacro de pai, o conduz a uma cidade próxima, onde os meninos amadurecem e o cinema local pode reservar surpresas para além dos filmes. O encontro de duas configurações do amor nas irmãs Madeira (Bruna Linzmeyer e Bia Arantes) vai completar o enredo do romance de formação do jovem Tony.

Pode não ser a história mais inesperada do ano, mas Selton a dirige com firmeza de veterano. A ansiedade de Tony, assim como os desejos e ocultamentos dos demais personagens, são transmitidos por um constante jogo de olhares para o extra-quadro, voltados para um outro tempo, outro espaço ou outra realidade que está prestes a se descortinar. Tudo é muito bonito e cheio de ressonâncias, mesmo quando alguns efeitos cênicos (câmera lenta, montagem coreográfica, etc) parecem mais retóricos que significativos.

Em mais uma operação curiosa sobre o livro, Selton atribui ao personagem central o prenome do escritor (Antonio/Tony, em vez de Jacques) e projeta sobre ele um pouco da sua própria personalidade. Isso fica patente na forma rápida, mordida, levemente irônica e um tanto monotônica de falar, que passa do diretor para o personagem Paco e também para Tony. Daí a dificuldade que tive de entender diversas falas dos dois.

A parceria de Selton com a produtora Vania Catani chega a seu terceiro capítulo (depois de Feliz Natal e O Palhaço) num nível excepcional de realização. O FILME DA MINHA VIDA é “cinema de qualidade” brasileiro apto a ter boa circulação nacional e internacional. Talvez não emocione tanto quanto pretendia, mas toca nas teclas certas de um nobre e sólido melodrama.

P.S. Pedem-me que esclareça o uso do termo “de qualidade”. Remeto à expressão “cinema de qualidade” que os críticos alinhados à Nouvelle Vague atribuíam ao cinema francês de recorte clássico, bem aceito de maneira geral, e que então se procurava superar. Apesar do uso pejorativo na época, o termo não deixava de fazer jus à qualidade dos filmes de Marcel Carné, Jean Renoir, Julien Duvivier etc.  

Um comentário sobre “Um filme “de qualidade”

  1. Estou curioso, gosto do primeiro filme do Selton, e fico feliz que a produtora Vania Catani emplaca mais um filme com ele, era menina quando filmamos Cabaret Mineiro( fiz a produção executiva) aqui nos Montes Claros,ficava encantada com as filmagens, e deu no que deu, correu atrás do sonho…Sucesso pro Filme Da Minha Vida.

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