Centro Oeste Story

Pela segunda vez em pouco tempo, a Guerra do Paraguai (bem chamada por Sylvio Back de “Guerra do Brasil”) volta a ressoar no cinema brasileiro. Depois de Guerra do Paraguay, alegoria de desconstrução do discurso bélico talhada por Luiz Rosemberg Filho, é hora de conferir NÃO DEVORE MEU CORAÇÃO, fantasia de psicanálise histórica assinada por Felipe Bragança.

Falo em psicanálise histórica porque Bragança lida com o retorno de um recalque. Os paraguaios dizimados às dezenas de milhares pelas tropas de Caxias e do Conde d’Eu (os 600 mil citados no filme me parecem um exagero) ecoam nos índios guaranis que hoje ficam à mercê das armas de fazendeiros brasileiros na área fronteiriça entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai. No conto meio realista, meio mágico do filme, cadáveres deslizam pelo Rio Apa enquanto brancos e índios reeditam as antigas batalhas em rachas de motos entre gangues rivais.

No centro da ação está a obsessão romântica de Joca, um menino branco, por Basano, uma menina índia que se crê “a rainha tatuada do Rio Apa”. Oito anos depois da mulher gorila, Bragança nos traz a garota-jacaré. Basano é uma figura nos limites do mítico, enquanto Joca pertence ao mundo da imanência e da simples aspiração. O irmão dele, Fernando (Cauã Reymond), integra uma gangue de motoqueiros e personifica o vigor físico em contraste com a energia espiritual dos guaranis.

Felipe Bragança é um autor ambicioso, que não se contenta com poucos subtemas nem com a prisão dos gêneros. NÃO DEVORE MEU CORAÇÃO se bate para conciliar um drama romântico, uma história de amadurecimento, uma narrativa mitológica, um filme de ação, uma evocação histórica e uma fantasia adolescente com jeitão de gibi. Há referências também à dissolução da família dos irmãos e a uma disputa amorosa entre grupos rivais – algo que chega a sugerir um West Side Story sem música e dança.

O pacote tem dificuldades para assumir uma forma coesa. Os fragmentos de ideias mais se dispersam que se conjugam. As cenas da gangue de motoqueiros são particularmente embaraçosas, com momentos que mais parecem anúncio de cerveja que a desvelação de um fenômeno cultural. As atuações robóticas de parte do elenco tampouco colaboram para uma fluência mais palatável.

Em contrapartida, o filme representa um avanço na obra do diretor em relação à qualidade técnica e à exploração de locações. A fotografia de Glauco Firpo e a direção de arte de Dina Salem Levy fornecem uma justa mistura de realismo e encantamento, mesmo quando o roteiro não consegue acomodar todos os elementos. As belíssimas composições de imagens e uma trilha sonora potente sustentam um prazer subsidiário diante do filme. Diálogos em português, espanhol e guarani asseguram um colorido adequado à região.

De resto, Bragança continua fiel a sua proposta de abrir flancos no cinema para uma poética que conjugue os avatares da natureza, os arquétipos da mitologia e a imaginação infantojuvenil. Ao se debruçar sobre a questão guarani, ele celebra a derrota de todos como um destino incontornável. Também os super-heróis precisam compreender o valor do fracasso.

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