GREEN BOOK: O GUIA
GREEN BOOK: O GUIA repete uma fórmula bem hollywoodiana: a de dois personagens opostos que viajam juntos, se influenciam e se transformam mutuamente. O leão de chácara ítalo-americano Tony Vallelonga (Viggo Mortensen) é um porco racista e ultraviolento no início do filme. O pianista Don “Doctor” Shirley (Mahershala Ali) é um preto esnobe do Norte, de formação clássica, que nunca pegou um frango frito com as mãos nem ouviu Little Richard. A época é 1962, quando um músico como Dr. Shirley era recebido como estrela no Sul dos EUA, desde que não quisesse sentar-se para jantar junto com seus fãs brancos nem usar o mesmo banheiro que eles.
Tony é contratado como motorista de uma turnê de Don Shirley, o que dá margem a uma batalha de orgulhos e de estereótipos. Um buddy movie no apartheid. Durante a interação na estrada, a metamorfose em sentidos opostos será das mais previsíveis. Um processo de conscientização recíproca se dá entre shows, paradas em bares e pernoites em hotéis de variada categoria. A viagem segue as dicas do Livro Verde para Motoristas Negros, que mapeava as condições favoráveis em época de segregação.
O roteiro, baseado em livro de Nick Vallelonga, filho do Tony real, permite algumas observações sagazes sobre o apartheid que então ainda vigorava em estados como Kentucky, Alabama e Mississippi. Mas é a troca de lições entre o afro- e o ítalo-americano que gera as melhores sacadas. Entre o célebre e submisso pianista e o pária social de pele branca, cabia perguntar quem era “mais negro” perante as elites daquele contexto.
O filme tem sido criticado por reeditar uma narrativa do “branco salvador”. Tony, de fato, ensina o pianista a ser negro. Mas não se pode desprezar o que ocorre na mão inversa, com Tony aprendendo a ser um homem melhor. Há algo de esquemático nisso, mas também uma dose simpática de humanismo.
Peter Farrely, diretor de vários sucessos puramente comerciais (Debi & Lóide, Quem Vai Ficar com Mary?, Eu, Eu Mesmo e Irene) assina seu primeiro filme de pretensões mais sérias, embora sem deixar o campo da comédia. Na categoria de comédia ou musical, GREEN BOOK ganhou o Globo de Ouro de melhor filme, roteiro e ator coadjuvante (Ali). As acusações de mau comportamento sexual que pesam sobre o passado de Farrely e a pecha de islamofóbico que atinge Nick Vallelonga, embora frágeis, podem prejudicar o caminho para o Oscar, a que o filme concorre em cinco categorias. Afinal, o Livro Cinza da exacerbação do politicamente correto é o guia dos nossos tempos.
Eu também pensei na mesma referência (Conduzindo Miss Daisy) quando vi o trailler desse filme. Apesar de ter me emocionado em algumas passagens graças ao desempenho dos dois atores, confesso que achei, como todo filme comercial norte-americano, a narrativa carregada de clichês. Também me incomoda – especialmente nesses tempos – que o um filme sobre racismo seja protagonizado por um branco, razão pela qual Ali foi indicado como coadjuvante (no fundo acho essa distinção da academia bastante questionável). Mas gosto muito quando vc destaca que um personagem humanizou o outro. No fundo, o segredo está sempre na troca.
Pois é, Dannon, não vejo hierarquia entre os dois papéis. A indicação de coadjuvante para Ali já é uma forma de racismo.