Cinema candango e cinema de gênio

Uma história afetiva do Festival de Brasília, exibida na Mostra de Cinema de SP de 2019, e o pensamento de Stanley Kubrick sobre cinema, que chega à Mostra deste ano

Brasília louca por cinema

Pesquisadores e festivaleiros podem sentir a falta dessa ou daquela história, desse ou daquele filme importante, mas ninguém pode negar a qualidade e a abrangência do documentário Candango – Memórias do Festival de Brasília. A dedicação do diretor Lino Meireles é exemplar. Em 2007 ele lançou o livro de entrevistas Candango – Memórias do Festival Vol. 1 e uma enciclopédia digital com informações sobre todas as edições do evento. Entre as entrevistadas no filme estão duas pesquisadoras com trabalhos igualmente importantes sobre o quinquagenário certame brasiliense, Maria do Rosário Caetano e Berê Bahia.

Meireles articula de maneira dinâmica uma abundância de imagens e testemunhos sobre a história do mais antigo festival de cinema brasileiro. Um festival que mudou de feições e sofreu abalos desde que surgiu no bojo da formação cultural de Brasília nos anos 1960, por iniciativa de Paulo Emilio Sales Gomes, então professor da Universidade de Brasília. Nos primeiros anos, o glamour das festas (“Trepava-se muito”, relembra Jean-Claude Bernardet) e das reuniões em torno da piscina do Hotel Nacional. Tempos em que um festival sem piscina não era um festival.

Ao mesmo tempo, o FCB se instituía como um espaço de exceção dentro da ditadura, quando muitos filmes eram liberados somente para exibição no festival e censurados no resto do país. Esse oásis tampouco resistiria à sanha da censura, que proibiu O País de São Saruê, de Vladimir Carvalho, em episódio histórico. O próprio festival chegou a ser suspenso entre 1972 e 1974 por conta de turbulências na política cultural. Sua localização no centro administrativo da nação resultou num nível de politização sem equivalentes entre os festivais. Até hoje a plateia do Cine Brasília durante o evento é tida como a mais politizada de todas.

São famosas as histórias de vaias homéricas, como as dirigidas a Claudia Raia quando era garota propaganda de Collor ou a Rodrigo Santoro por ser astro da Globo antes que o público se dobrasse a sua atuação em Bicho de Sete Cabeças e pedisse perdão. Nada rivaliza com o FCB como polo de polêmicas sobre decisões dos júris e opiniões da crítica, ou de manifestos selvagens como os de Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Neville d’Almeida e Luiz Alberto “Gal” Pereira, que numa performance de insatisfação jogou seus troféus candangos no lixo. Em depoimento a Lino Meireles, Neville chega a cobrar justiça e reconhecimento a seus “filmes maravilhosos” (as aspas são citação, não ironia).

A história contada em Candango não se estende até os anos mais recentes, mas pontua alguns filmes consagrados em Brasília: Todas as Mulheres do Mundo, O Bandido da Luz Vermelha, Meteorango Kid, A Hora da Estrela, Que Bom te Ver Viva, Alma Corsária, Louco por Cinema, Bicho de Sete Cabeças, Branco Sai, Preto Fica. Destaca também a importância do festival para a afirmação de um cinema brasiliense, assim como o espaço aberto aos filmes em 16mm, aos filmes digitais e ao cinema universitário, enquanto outras competições concentravam-se na produção em 35mm.

Acaba de ser anunciada a 53ª edição do FCB em dezembro, com curadoria do cineasta Silvio Tendler. A Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal assumiu a organização do festival. Oxalá escape à síndrome de destruição da cultura que assola o campo direitista aboletado no poder desde 2016. A eterna vulnerabilidade do FCB está novamente exposta, tal como nos mostra o histórico tão bem levantado por Lino Meireles.


Em busca dos filmes perfeitos

No prólogo ao seu livro sobre Stanley Kubrick, o crítico francês Michel Ciment pondera como é difícil expressar-se em palavras sobre filmes de um autor que sempre os descreveu como “uma experiência não verbal”. O próprio Kubrick recusava-se a comentar sua obra para não ter que “fazer resumos brilhantes e espirituosos” sobre ela. Daí a importância das entrevistas que Ciment conseguiu extrair dele entre 1972 e 1980. Elas fazem parte do volume Kubrick, cuja edição mais completa foi lançada no Brasil em 2017 pela editora Ubu.

Os áudios dessas entrevistas são a base e maior razão de ser do documentário Kubrick por Kubrick (Kubrick by Kubrick). Estão longe da exaustividade dos encontros entre Truffaut e Hitchcock, por exemplo, mas valem como um insight raro no pensamento de Kubrick para além dos filmes. Ele dá suas interpretações para Barry Lyndon, Laranja Mecânica e O Iluminado; fala sobre a sua concepção de  cinema (“é preciso ser realista para criar a ilusão”), seu método de direção de atores, sua preferência por personagens complexos e perversos, cujo rendimento dramático considerava muito maior.

Um dos temas mais explorados é o seu célebre perfeccionismo, que vinha junto com certa megalomania, evidente nas reiteradas analogias que fazia entre ele próprio e Napoleão Bonaparte. Em entrevistas de arquivo, atores e técnicos queixam-se – para em seguida elogiar – das repetições que às vezes chegavam às muitas dezenas para uma mesma tomada. Como contraponto, o diretor Gregory Monro selecionou um depoimento em que o ator Malcolm MacDowell, protagonista de Laranja Mecânica, atesta a abertura de Kubrick para o inesperado nos sets de filmagem. A afirmação é corroborada por Peter Sellers, que afirma ter inventado a “mão nazista” do seu personagem em Dr. Fantástico.

Outro assunto abordado extensivamente é a guerra, de alguma forma retratada em cinco dos seus 13 longas-metragens. A guerra era uma situação-limite que permitia ao diretor colocar em cena as dualidades humanas e os choques da moral.

A pesquisa exumou muitas fotos de bastidores (Kubrick raramente se deixava fotografar fora dos sets) e cenas raras do cineasta quando menino e de seu primeiro filme, o drama de guerra Medo e Desejo. Como material de ligação, Monro adiciona alusões cenográficas estilizadas a elementos dos filmes, como o quarto da cena final de 2001, a cama e a máscara de De Olhos Bem Fechados, o corredor e o machado de O Iluminado, as velas de Barry Lyndon.

Kubrick foi um dos grandes gênios do cinema, não resta dúvida. Mas é preciso não confundir o tema genial deste documentário com seu valor intrínseco como cinema. De posse daquelas fitas de áudio, de cenas de filmes de Kubrick e de uma boa pesquisa de fotos e de depoimentos alheios, não seria tão difícil fazer um bom documentário de televisão. Assim me pareceu Kubrick por Kubrick.

Um comentário sobre “Cinema candango e cinema de gênio

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