Águas turvas no cinema maranhense

AS ÓRBITAS DA ÁGUA na Mostra de SP

Frederico Machado aceita o ônus de fazer um cinema difícil, de narratividade rarefeita, que deixa o espectador à deriva diante das motivações e atitudes de seus personagens. De O Exercício do Caos (2013) a O Signo das Tetas (2015) e a este As Órbitas da Água, que conclui a sua “Trilogia Dantesca”, passando ainda por Lamparina da Aurora (2017) e Boi de Lágrimas (2019), assistimos a uma progressiva entropia na forma de apresentar suas tramas, geralmente calcadas em relações familiares conturbadas.

As Órbitas da Água propõe uma estrutura em três partes: 1. Água. 2. Lodo. 3. Órbitas. Na primeira parte vemos um casal moderno (Antonio Saboia, de Bacurau, e Rejane Arruda) chegar a uma vila de pescadores no litoral maranhense. Somos apresentados também à família de um pescador (Auro Juriciê, Flavia Bittencourt e Thalisson Costa). Uma sensualidade truncada parece dominar a relação entre os dois casais, enquanto o mistério se adensa sobre qual seria o vínculo entre eles. A água do mar tempera as cenas e dilui seus sentidos.

Na segunda parte, Lodo, dá-se finalmente a aproximação, sempre numa chave ambígua entre a atração sexual, a ternura e o espectro de alguma violência. Por fim, em Órbitas, a água retorna em forma de lágrimas e sangue, quando o filme caminha para o seu desfecho mortífero e inexplicavelmente sanguinolento.

A parábola do filho pródigo é invertida em quase toda a sua extensão, que avança até o parricídio. Há insinuações de incesto, ménage à trois, homoerotismo e troca de casais, tudo envolto num silêncio verbal de pedra,  exceto pela trilha musical bonita e quase ininterrupta. Em contrapartida, uma batalha de olhares se trava entre os personagens, exigindo de nós um esforço permanente de decifração. O que não é fácil, diga-se de passagem.

Trechos de poemas de Nauro Machado, pai do diretor, enfatizam a atmosfera mórbida, mas não ajudam muito a elucidar o que se passa por trás da bela superfície das imagens do fotógrafo Ben Real. As pulsões do sexo e da morte são bem claras, como nos filmes anteriores da trilogia e na poesia de Nauro, mas a sua aplicação dramatúrgica permanece nebulosa. O primeiro dos dois curtos diálogos do filme chega aos 33 minutos, uma vez que o diretor aposta nas sugestões visuais e na capacidade de imantação dos enigmas.

Frederico Machado quer sobretudo criar imagens intrigantes e sensorialidades incômodas. Uma pessoa semi-enterrada com peixes mortos ao redor do corpo, um casal que se afaga em meio ao lodo, poças de sangue se formando em torno dos pés de um homem. Em cada composição minuciosamente estudada percebe-se o gosto rebuscado do cineasta, sua cinefilia de alto nível e a insubmissão aos códigos de um cinema de fácil digestão.

A versão de As Órbitas da Água que está sendo apresentada agora é assumidamente intrincada, uma versão que o diretor chama de “líquida”, na qual pretende que “as sensações prevaleçam de forma fluida”. Para o lançamento, ele promete um corte mais narrativo e explicativo. Por ora, esse novo exercício de radicalidade autoral, único no Maranhão, impressiona na estética, mas fica ensombrecido pela obscuridade.

NA REAL_VIRTUAL Parte 2 – Seminário online sobre documentário brasileiro contemporâneo
Com Eduardo Coutinho (in memoriam), Walter Salles, Jorge Furtado, Ana Luiza Azevedo, Susanna Lira, Joel Zito Araújo, Kiko Goifman, Claudia Priscilla, Vincent Carelli, Alberto Alvares Guarani, Evaldo Mocarzel, Lucia Murat, Silvio Da-Rin, Sandra Werneck, Eryk Rocha, Roberto Berliner, Adirley Queirós.
Informações e Inscrições aqui

 

Um comentário sobre “Águas turvas no cinema maranhense

  1. Pingback: Nordeste: amor, magia e dança | carmattos

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s