A mala pesada

NUNCA RARAMENTE ÀS VEZES SEMPRE no streaming

Esse talvez seja o filme mais “romeno” já feito nos Estados Unidos. Além do tema lembrar o lancinante 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, o estilo descritivo e lacônico da diretora Eliza Hittman, a nudez do seu realismo e a própria textura do filme, rodado em 16mm, evocam características frequentes do cinema romeno da década passada. A história foi inspirada num caso real ocorrido entre a Irlanda e Londres, que Eliza transpôs para os EUA.

Seus filmes anteriores (Ratos de Praia e Parece Amor) também enfocavam adolescentes. Em Nunca Raramente Às Vezes Sempre (Never Rarely Sometimes Always), a retraída e traumatizada Autumn (Sidney Flanigan) confirma que está grávida e decide-se pelo aborto. Primeiramente, auto-induzido, depois recorrendo a uma clínica de Nova York, já que não seria possível na Pensilvânia onde mora. A viagem com a prima Skylar (Talia Ryder) é uma jornada embaraçosa por uma metrópole anônima e hostil, com pouco dinheiro e sem noção do que poderia acontecer. Dada a intenção de ficar apenas algumas horas em NY, a mala pesada que arrastam por rodoviárias e metrôs só pode ser uma metáfora da carga suportada pelas mulheres que aspiram à autonomia sobre seus corpos.

Autumn e Skylar quase não se falam, mas se entendem por olhares e gestos, mesmo quando entram em conflito. Essa relação muda é fundamental para a proposta não didática do filme. Ligados unicamente no presente absoluto da viagem, somos poupados de explicações psicológicas diretas e entramos num mood muito comum entre adolescentes. Até mesmo a identidade de quem engravidou Autumn fica na dependência de nossa eventual dedução.

A visão crua da burocracia médica numa clínica de aborto dá a medida do desamparo de Autumn em sua inconsequência e abulia juvenis. O título brota de uma cena antológica em que ela é interrogada por uma assistente social real (Kelly Chapman) sobre seu histórico afetivo e sexual. O efeito sobre a fisionomia de Sidney Flanigan é devastador, prova de que a atriz estreante estava pronta para o estrelato. No Festival de Berlim, Nunca… ganhou o Grande Prêmio do Júri, uma espécie de segundo lugar. Em Sundance, ficou com o prêmio especial Neorrealismo.

Cabe, ainda, comentar a caracterização dos homens, todos aparentemente canalhas, importunadores sexuais ou simplesmente oportunistas. Essa generalização um tanto grosseira faz parte do discurso político do filme, que quer enfatizar a solidão das mulheres jovens diante da gravidez indesejada. É o único ponto em que a mão de Eliza Hittman pesa além da conta, num filme de resto comedido, nuançado e absorvente.

► Nunca Raramente Às Vezes Sempre está nas plataformas Now, Google Play, Apple TV e Looke.

Trailer sem legendas:

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