Coragem é o que ninguém pode negar a Terrence Malick. A Árvore da Vida é mais um de seus filmes que se arrisca a contrariar o gosto e as tendências da indústria, ainda que conte sempre com a aprovação de quem almeja um sentido mais nobre para o cinema americano. Depois da morte de Kubrick, talvez seja ele o último remanescente de uma estirpe de monstros sagrados e elusivos, de quem se espera sempre muito e a quem tudo parece permitido.
Depois de seis anos de produção e talvez décadas de desenvolvimento do projeto, o filme parece um gigante que acordou para receber a Palma de Ouro de Cannes e maravilhar olhos e ouvidos com sua meditação audiovisual sofisticadíssima. A um custo maior que os 32 milhões de dólares estimados, talvez seja o mais caro filme experimental jamais realizado. Em termos de ambição, fica pouco a dever a 2001, Uma Odisséia no Espaço. Pretende narrar a formação de um adolescente do Texas nos anos 1950 como uma metonímia da formação do Universo. Malick não pensa pequeno. Se todo cineasta, ao criar o seu mundo quase materialmente, se diverte “brincando de Deus”, Malick leva a brincadeira mais a sério do que nenhum outro.
Não falo sequer dos 20 minutos ocupados pela sucessão de efeitos especiais de Douglas Trumbull para figurar a criação do mundo e das espécies animais. Isso é apenas o sintoma de megalomania mais explícito – e mais enfadonho quando se transforma num pequeno compêndio de História Natural. Falo da própria linguagem narrativa do filme, que detona a linearidade temporal e espacial em troca de uma explosão de microcenas. Melhor dizendo, Malick não filma cenas, mas fenômenos, sejam eles cotidianos ou galácticos. A montagem (da qual participou o brasileiro Daniel Rezende junto a outros quatro montadores) fragmenta a ação e a recompõe elipticamente, conduzindo o espectador a uma percepção quase alucinatória. Algo de sobre-humano rege aquela maneira de ver o mundo. Aquele deslizar sem peso da steadicam entre móveis ou vegetações. Aquela pararrealidade composta por refrações de luz, sombras alongadas, paisagens oníricas e incongruentes. Vemos as coisas como se fosse através do olho de uma entidade onipresente. O olho de Deus.
Admitir claramente a existência de Deus é o que mais difere A Árvore da Vida de Melancolia, seu antípoda-semelhante em Cannes. Lars Von Trier, em seu materialismo agonizante, trata do fim do mundo, claro, enquanto o cristão Terrence Malick volta-se para a criação. O Deus de Malick, porém, não é o Deus carola e misericordioso, mas um Deus dialético que abarca toda a perplexidade do Homem. Há uma óbvia relação do Deus-Pai com a figura do pai biológico, capaz de proteger, orientar e fortalecer, assim como de punir, oprimir e humilhar. Ante as desgraças do mundo, a descoberta do garoto Jack é a mesma que sempre fazemos em algum momento das nossas vidas: Deus permite que qualquer coisa aconteça. Não há ordem, portanto, nem justiça na face da Terra. Não há respostas, como nos velhos filmes de Bergman.
No entanto, Malick não é Bergman nem Von Trier. Sua inspiração religiosa lança perguntas ao vento mas não esmorece por não receber nada de volta. Afinal, Deus é não apenas a Natureza dura e indiferente, mas também a Graça (representada pela mãe) com tudo o que ela incorpora de tolerância e perdão. Assim o filme conclui sua meditação com uma sequência pavorosa de louvor à esperança e à transcendência espiritual, que não destoaria dos filmes espíritas mais empedernidos da safra recente. E este, para mim, não é o único senão de A Árvore de Vida.
A beleza estonteante das imagens e o mistério da estrutura narrativa não vencem incólumes os 139 minutos do filme. A partir de certo ponto, esse estilo compenetrado e solene, embalado por metade do catálogo de música clássica da Deutsche Grammophon, me pareceu enjoativo e autoimportante. Mesmo as imagens mais diáfanas carregam um peso, uma carga semântica que aspira à grandiloquência. Não sei quanto tempo eu estaria preparado para suportar a visão direta de Deus, caso ele existisse.
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Um comentário bem elaborado Mattos… concordo com quase tudo menos com a ultima afirmação: “…caso ele existisse”.
Entretanto, da mesma forma que ficou notório aqui mesmo por meio dos comentários…
“Alguns” assistem o filme e não conseguem enxergar a “obra de arte implícita”, nas entrelinhas, nos detalhes… na verdade, por vezes a obra de arte só é visível àquela pequena parte da população “os sensíveis, abastardos de intelectualidade e essência” conseguem ver…
Da mesma forma, Deus, está presente em todos os lugares, do início ao fim… mas só é visível para poucos sensíveis e corajosos…
É uma questão de visão, eu sei, respeito, mas pelo texto, acredito que, se quisesse, estaria mais preparado do que imagina, não para “suportar a visão direta de Deus”, mas como aqui, ver e se fazer enxergar através dela”.
Obrigado pelo comentário. Humildemente, reconheço minha limitação para esses misteres. Penso e escrevo sempre a partir dessa limitação. Felizes os mais sensíveis e corajosos.
Vi ontem. Os mais de 20 minutos de imagens submarinas, vegetações, nuvens, erupções vulcânicas, são mais do que enfadonhas, são gratuitas, desnecessárias, perdidas, um desrespeito ao espectador. Sem falar na pavorosa sequencia de vultos na praia. Onde está a obra prima?
Grande texto, Mattos. Sempre achei o Malick um candidato eterno ao grande escalão dos diretores. Mas esse é aquele candidato que a cada filme dá um passo – uns maiores do que outros – mas também há a impressão que ele nunca chegará lá.
Como você disse, a eterna busca pela grandiloquência (inclusive por sua capacidade de alongar o ‘inalongável’) em seus filmes, o faz um aspirante digno de dúvidas sobre sua capacidade.
Deixo pra ver em casa, pois no cinema, o sono vai me consumir.
OK, Vitor, concordamos em coisas sobre o Malick, mas discordamos no seguinte ponto: tem que ver esse filme primeiro no cinema. A escala do espetáculo pede isso. Depois reveja e durma em casa, se for o caso 🙂
Tentarei, Mattos. Tentarei…