O primeiro volume de As Mil e uma Noites portuguesas já está em cartaz. Os dois outros, ao que me consta, entram semana que vem. Miguel Gomes esteve no Rio semana passada para apresentar o(s) filme(s) na itinerância da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ele explicou que são três filmes, mas é um filme só. “Coisa que eu não sabia que existia, pois nunca tinha feito”, esclareceu.
Miguel tem feito coisas do arco da velha. Entre curtas e longas, firmou-se como o mais festejado cineasta português da atualidade. Entre os longas, A Cara que Mereces flertava com os contos de fada, anunciando já a irreverência do diretor no trato com um certo jeito lusitano de ser. Aquele Querido Mês de Agosto encantou a muitos com sua mescla de documentário reflexivo e ficção. Tabu foi objeto de admiração praticamente unânime em sua sátira aos filmes etnográficos e ao cinema colonialista. As Mil e uma Noites parte da realidade portuguesa dos anos 2013-2014 (crise econômica, desemprego, empobrecimento, desmonte social) para levantar voos amargos no tapete da fantasia.
Para mim, o primeiro volume (O Inquieto) é o melhor de todos, e cumpre vê-lo para melhor apreciar os demais. O próprio Miguel inicia os trabalhos no papel de um cineasta interessado em conciliar o documentário social com um projeto de filme bonito. Enquanto documenta o fechamento dos estaleiros de Viana do Castelo e a luta dos apicultores da região contra uma praga de vespas – já o choque dos dois assuntos provoca estranhamento –, ele estabelece uma distância crítica entre imagens e sons. Coloca-nos num território estranho, entre a realidade e a farsa, a adesão documental e o distanciamento ficcional.
Mas eis que no meio do trabalho, o diretor foge literalmente da cena, deixando a equipe desnorteada, para reaparecer mais adiante enterrado até o pescoço por desobedecer às regras da produção cinematográfica. Parece um cineasta brasileiro sufocado pela burocracia da Ancine. É então que ele inventa uma Xerazade para socorrê-lo e evitar sua decapitação.
Daí em diante, a miséria portuguesa passa a inspirar um punhado de histórias absurdas, no limite do surrealismo. Um grupo de ministros e empresários precisam recuperar a ereção para tocar o país para a frente, auxiliados por um hilário tradutor brasileiro. Cabe, aliás, verificar as menções folclóricas ou musicais que Miguel faz ao Brasil em cada um dos volumes. Há também a história de um galo que é levado a julgamento por tentar “acordar os homens” de uma aldeia com cantos fora de hora. Crianças provocam incêndios rurais por razões de ciúme ou por outras ainda mais prosaicas. Um sindicalista adquire doença coronariana de tanto ouvir depoimentos de desempregados. E o cortejo segue por aí afora, envolvendo banhistas de inverno, uma baleia explosiva e mais algumas sandices brotadas da situação vexatória de Portugal.
As características mais marcantes da obra de Miguel Gomes estão fartamente presentes em As Mil e uma Noites, quais sejam os textos de alta qualidade literária e forte teor satírico, as imagens extravagantes e a narrativa rigorosamente imprevisível. Pulsa ali uma visão profunda da singeleza e da dor portuguesas. Realidade e artifício não se rejeitam, antes caminham juntos, como resultado de uma criatividade exuberante.
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