Seis longas e um média

ressources_2014-04-23_20-12-24_img_0071hdComecei a ver RESPIRE sem ter lido nada antes sobre o filme. A primeira meia-hora me fez temer mais um romancezinho lésbico água com açúcar, uma espécie de “Azul é a Cor Mais Quente” light. Mas eis que fui surpreendido pela progressão da relação entre as duas coleguinhas de colégio – que afinal não teria nada de light, ainda que em sentido bem diferente do filme da moça de cabeleira azul. Nem a aula sobre a escravidão da paixão, na cena de abertura, fazia prever os rumos da história. A inversão de perfis entre as duas meninas, assim como a relação de cada uma com as respectivas mães, são coisas para psicanalistas explorarem. A diretora Mélanie Laurent, ajudada pelas precisas inflexões das atrizes Joséphine Japy e Lou de Laâge, consegue transmitir o espírito manipulador, o inferno do ciúme e a agressividade passiva de jovens submetidas à obsessão amorosa. A asma de uma delas vira um subtema do filme e se metamorfoseia engenhosamente no chocante desfecho.


Milton Hatoum faz ponta como um barqueiro na adaptação do seu ÓRFÃOS DO ELDORADO dirigida por Guilherme Coelho, o que pode ser interpretado como um sinal de aprovação. Mas a “presença” de Hatoum não se limita a isso. Parece assombrar o filme inteiro com o peso de uma grande responsabilidade. As cenas da primeira metade, com Arminto (Daniel Oliveira) e Florita (Dira Paes), sofrem com uma carga de solenidade, um excesso de poses, pausas e silêncios que clamam por um significado. Já depois da primeira aparição da “encantada” Dinaura (Mariana Rios), Coelho assume uma busca mais sensorial, enfatizando a obsessão de Arminto. Nisso põe muito capricho nos aspectos de construção da imagem e desenho sonoro. Ninguém pode acusá-lo de não correr riscos. O filme não tenta simplificar a narrativa intrincada de Hatoum, mantendo a imbricação de tempos e os deslizes constantes entre realidade, alucinação e mitologia amazonense. Mas a ousadia do projeto não deixa de cobrar seu preço. A atualização da trama coloca a órfã Dinaura como uma cantora sofisticada, opção bastante estranha para o contexto, e descarna o enredo de suas implicações históricas e econômicas. Ainda assim, como o livro, impregna de sensualidade e torpor. Fosse um pouco menos cerimonioso, seria mais que satisfatório.


Do lado de fora do cinema, o documentário SAMBA & JAZZ pode parecer pouco atraente. Traçar semelhanças e paralelos entre os dois gêneros a partir de suas raízes africanas soa como tema de monografia escolar. Mas a extensão da abordagem de Jefferson Mello e a perspicácia com que ele a apresenta em filme recompensam bem mais do que a sinopse promete. Fotógrafo e autor do livro “Caminhos do Jazz”, ele trata do assunto sem qualquer ranço acadêmico e se esquiva a usá-lo como mero pretexto para enfileirar números musicais. Baseia-se somente em bons depoimentos e em sucintas demonstrações em ruas, escolas de samba e clubes de jazz do Rio e Nova Orleans. O filme ginga entre uma cidade e outra, alinhando similaridades não apenas musicais, mas de estilo de vida, espírito popular, iniciação de crianças, papel social, racismo, relações entre negros e índios, costumes funerários, Mardi Gras e Carnaval. A quantidade de analogias é de fato impressionante. O fato de que não vêm expostas como num estudo, mas ilustradas com verve e simpatia por astros de Madureira e do French Quarter, pode não satisfazer a expectativas etnográficas nem parecer um doc dos mais estruturados, mas é um painel instrutivo e muito agradável de ver e ouvir. Não sei se pelo acaso da seleção de personagens ou por alguma diferença efetiva de perfil, achei os brasileiros (mais jovens) ligados prioritariamente no sucesso pessoal e no futuro, enquanto os americanos (em geral veteranos) focavam os fatores comunitários e o passado.


Exemplar de filme noir paulistano, SE DEUS VIER QUE VENHA ARMADO, primeiro longa de Luís Dantas, procura combinar thriller criminal, drama familiar, romance e conflitos de amizade num curto tempo de 72 horas de ação. Presidiário em licença, Damião (Vinicius Oliveira) vive uma série de experiências simultâneas que o roteiro a custo tenta conciliar, afrontando a verossimilhança emocional dos personagens. O caso de amor iniciado logo em seguida a uma grande tragédia familiar é algo difícil de engolir, assim como o projeto de evasão do trio central em direção à orla paulista só faz dispersar o interesse. O paralelo de Damião com o policial iniciante tampouco firma relevância dentro da dramaturgia do filme. As ações, entrecortadas demais, não permitem que o drama se adense. O retrato da periferia resulta frio, distanciado, e “limpo” demais, organizadinho demais. Destaque-se o bonito trabalho de fotografia de Helcio “Alemão” Nagamine, mesmo quando as intenções estéticas titubeiam entre a crueza do thriller e a busca de um fatalismo romântico.


As cenas de abertura de OS MAIAS – CENAS DA VIDA ROMÂNTICA dão a chave para compreensão da proposta de João Botelho: filmar o livro de Eça de Queiroz como se fosse uma peça de teatro de cartolina, um desfile de aparências. Não contam para isso apenas os cenários exteriores em telões pintados e a disposição frequentemente frontal dos atores perante a câmera (o público), mas também a maneira de fazer de tudo uma exposição de falas, gestos e maneiras de uma elite esnobe que adorava se exibir e macaquear as grandes metrópoles europeias. A suntuosidade dos interiores, as posturas empoladas ou exageradamente histriônicas – tudo ali é um grande teatro, ameaçado pelos escândalos e pelas verdades não reveladas. Nem tudo funciona a contento, nem faz jus à excelência ou à verve demolidora de outros filmes de Botelho (“Um Adeus Português”, “Conversa Acabada”, “Tráfico”). O casal Graciano Dias-Maria Flor não tem lá muita química, até porque o ator tem limitações evidentes. A decupagem esquisita torna algumas cenas incongruentes. E a narração do texto de Eça, se por um lado garante sabor literário, por outro provoca a sensação de redundância, especialmente quando inclui diálogos que os atores poderiam dizer.


Os últimos dias de vida de PASOLINI, contados por Abel Ferrara, são uma confusa (des)combinação de retrato familiar, resumo de ideias, encenação de obras inacabadas, passeio pelo submundo e reconstituição criminal hipotética. Não sei bem onde Ferrara quis chegar além de colocar em imagens trechos do romance inconcluso “Petrolio” e do roteiro de “Porno-Teo-Kolossal”, que PPP não teve tempo de filmar. A presença de Ninetto Davoli nesse último é uma das poucas recompensas que o filme oferece a quem admira e repeita Pasolini. A escolha de Willem Dafoe para o papel de Pier Paolo é física e espiritualmente acertada, mas podiam ter pintado o seu cabelo de preto porque um Pasolini alourado é difícil de suportar. Mais graves ainda são as posturas de playboy com que o personagem às vezes aparece, ao volante do carro e ao som de canções pop ou árias de ópera. O crítico da Variety definiu bem: “É o artista marxista radical reinventado como garoto do poster capitalista”. Ferrara não passaria mesmo por um assunto desses sem mostrar felações em close e orgias ruidosas, tão transgressivas quanto uma visita a site pornô. As cenas do assassinato, decupadas em pormenores, encampam a versão de que PPP teria sido vítima de um linchamento com tinturas homofóbicas. Isso nunca ficou esclarecido. O cineasta estava impressionado com a violência disseminada na sociedade italiana. Talvez a tenha procurado para si, consciente ou inconscientemente. O filme de Ferrara pode ser mais uma violência contra ele. Luiz Rosemberg Filho assistiu e diagnosticou: “Pasolini foi assassinado pela segunda vez”.


201520392_1_IMG_FIX_700x700ESCAPE FROM MY EYES, o média-metragem que Felipe Bragança realizou na Alemanha, é um poema visual sobre lembranças e sonhos de alguns imigrantes africanos acampados numa praça de Berlim em 2012. A partir de histórias ouvidas no acampamento, e tendo os próprios personagens contracenando com atores alemães, Felipe dramatizou encontros, partidas, resgates e confrontos, tudo em chave minimalista. Enxertou como pôde algumas de suas obsessões autorais, como as máscaras, os clóvis (da série Claun), as roupas e luzes coloridas, entre outros signos de uma estética do lúdico. A influência de Apichatpong Weerasethakul permanece visível, sobretudo no posicionamento dos personagens em relação à natureza e na atmosfera ao mesmo tempo mágica e lacônica. Além de imagens muito bem compostas, fica na memória a forma ao mesmo tempo distante e próxima, desapaixonada mas carinhosa, com que ele recolheu e figurou o que aqueles homens haviam deixado para trás. As cenas da demolição do acampamento, já em 2014, fecham o filme com uma violência potencializada pelo que vimos antes.

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