Somos todos Daniel Blake

Palma de Ouro em Cannes, EU, DANIEL BLAKE repõe Ken Loach na linha direta dos descamisados britânicos. O operário viúvo e solitário Daniel Blake (Dave Johns), recém-saído de um ataque cardíaco, se bate com a intolerância burocrática do sistema de auxílio-doença e auxílio-desemprego. No caminho, conta somente com a solidariedade de alguns poucos, geralmente destituídos como ele, e chega a formar uma família afetiva com uma jovem desempregada (Hayley Squires) e seus dois filhos.

Loach e seu roteirista pelos últimos 20 anos, Paul Laverty, dominam como poucos esse realismo das bordas da sociedade e o manancial dramático do choque entre trabalhadores humildes e estruturas do governo conservador. A rematada simplicidade com que tudo é encenado provoca um acúmulo de identificação, carinho e preocupação em torno dos protagonistas à medida que eles afundam cada vez mais na aflição pela sobrevivência digna.

Nesse filme, porém, senti um certo automatismo na sucessão de infortúnios dos personagens. O roteiro parece preencher um daqueles formulários excruciantes da assistência pública. Tem funcionários insensíveis? Sim. Tem seguranças durões? Sim. Tem serviços telefônicos que nunca atendem? Sim. Tem humilhação informática de idosos? Sim. Tem roubo vexaminoso no supermercado? Sim. Tem acesso de fome na fila da cesta básica? Sim. Tem recurso à prostituição? Sim. Tem bullying infantil por causa da pobreza? Sim. Tem desespero levado às ruas em forma de protesto? Sim. Tem limite para o calvário de Daniel Blake? Não.

Ainda que avance em linha reta por essa rota de adversidades, o filme só não comove os mais empedernidos. Seja pela “verdade” passada pelos atores e a direção, seja pela convicção do libelo contra a crueldade do sistema para com os cidadãos mais humildes. Na Inglaterra, já se toma o filme como bandeira em atos políticos (“Somos todos Daniel Blake”) ou, por outro lado, se o acusa de exagerar com fins de propaganda de esquerda.

A verdade é que o caso exemplar desse Daniel Blake, afinal, não expõe somente o quadro da previdência inglesa terceirizada por uma empresa americana (!). Em cada passo ou queda de sua via sacra, vemos refletidos os tantos trabalhadores que, no Brasil e em muitos países, levam meses para conseguir marcar um exame médico ou obter um benefício. Ou mesmo qualquer um de nós quando tenta arrancar uma informação por telefone e fica padecendo por horas com um torturante Vivaldi. É a prestação de serviços transformada em opressão, quando não em escárnio.

5 comentários sobre “Somos todos Daniel Blake

  1. Pingback: Trabalhar em areia movediça | carmattos

  2. Para aqueles que sentiram um “automatismo esquemático” no filme recomendo visitar alguns velhos chilenos que estão se suicidando por causa da aposentadoria made in privatização da previdência. Ou, se jovem, esperem chegar a sua vez depois de ter um problema de saúde sério ou de para se aposentar daqui a pouco tempo, depois que o novo governo privatizar a previdência, com o [pseudo]humanismo da neoliberal.

  3. Esperava mais do filme. Esse automatismo esquemático que você sentiu incomodou-me também. A ponto de ficar equidistante do drama. Sobrevalorizado por Cannes, em minha opinião. Mas concatenado com a atualidade.

  4. Pingback: O LADO ESCURO DA LUA

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