O SILÊNCIO DOS OUTROS
Descontados os esforços do Tortura Nunca Mais e, depois, a atuação tímida, mas simbolicamente importante, da Comissão da Verdade durante o governo Dilma, o Brasil foi um dos poucos países que não se empenharam a sério na reparação dos crimes de suas ditaduras no século XX. A Argentina, o Chile, o Camboja e outros tantos levaram seus genocidas aos tribunais e prisões. Na Espanha, as vítimas do franquismo até hoje lutam por justiça, como se vê no notável O SILÊNCIO DOS OUTROS, vencedor do Prêmio Goya de melhor documentário espanhol de 2018.
Com produção de Pedro Almodóvar e sua empresa El Deseo, os diretores Almuneda Carracedo e Robert Bahar (casal detentor de um Emmy pelo doc Made in L.A.) passaram seis anos acompanhando as batalhas de um grupo de sobreviventes dos massacres franquistas em busca de justiça em várias frentes:
– extradição e julgamento de eminentes torturadores,
– localização e identificação de ossadas de mortos enterradas em fossa coletivas,
– investigação sobre milhares de bebês roubados recém-nascidos de pais considerados “vermelhos” com fins de eugenia ideológica e
– mudança de nomes de ruas e praças batizadas em louvor a carrascos franquistas.
A missão não é nada fácil. Em 1977, dois anos após a morte de Franco, a Espanha instaurou uma Lei de Anistia semelhante à do Brasil, válida para os dois lados. Foi celebrado um “Pacto de Esquecimento” que equiparou algozes e vítimas, inviabilizando qualquer iniciativa de reparação. O filme mostra como a mensagem de “olvido” continua a ecoar na opinião pública e nas autoridades vigentes até 2017. Em nome de um olhar para o futuro, coloca-se o passado numa redoma intocável. Uma manifestação gigante de saudosos do franquismo em 2016, com uma pequena multidão fazendo a saudação fascista, é uma imagem perturbadora que se repete a cada ano, aditivada agora pela onda direitista que varre o mundo.
O juiz Baltazar Garzón, célebre por ter levado Pinochet às grades, fracassou no intento de punir os assassinos e torturadores franquistas em 2010. Foi então que um grupo de ativistas, apelando ao instituto da jurisdição universal, logrou abrir um processo na Argentina com aquele objetivo. O filme segue essa ação judicial até 2017, testemunhando as pressões do governo espanhol para que não chegue a bom termo.
A influência de Patricio Guzmán (Nostalgia da Luz) é evidente na articulação de um cenário histórico com a individualidade de personagens marcantes. O coordenador da Associação de Pres@s del Franquismo, José M. Galante, tem o desprazer de morar numa rua cuja placa exibe o nome de um general franquista e a poucos metros de seu torturador, o inominável Billy, el Niño, até hoje impune. As idosas Maria Martín (foto no alto) e Ascensión Mendieta perseveraram na busca dos ossos de mãe e pai, respectivamente, e são motivo de emoção no filme.
O SILÊNCIO DOS OUTROS quer destacar as não tão sutis diferenças que existem entre esquecimento, perdão e justiça. O perdão é possível, o esquecimento não. E a necessidade de justiça não é anulada pelo perdão. Crimes contra a Humanidade não prescrevem, assim como o desaparecimento do cadáver de um ente querido não cessa de doer nos que ficam. É como nos mostrou, aqui no Brasil, Memória para Uso Diário, de Beth Formaggini.
Estima-se que na Espanha ainda haja cerca de 100 mil mortos pelo franquismo em fossas coletivas espalhadas pelo país. O filme de Almuneda Carracedo e Robert Bahar se associa aos talvez poucos que ainda clamam por exumar toda a verdade.
Registre-se que também em 2018 apareceu outro documentário espanhol sobre o tema, La Causa Contra Franco ¿el Núremberg español?, de Lucía Palacios e Dietmar Post.
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