A 14ª Mostra de Cinema de Tiradentes começou sexta-feira sob os signos do luto (pelas tragédias das chuvas) e da política. “Inquietações políticas” é o eixo temático das discussões este ano. E um dos filmes a disputar o Troféu Aurora, entre realizadores iniciantes, vai bater na tela com um significado muito especial. Trata-se do documentário Enchente, de Julio Pecly e Paulo Silva, produzido por Cavi Borges.
Os desastres da região serrana do Rio de Janeiro ainda não tinham acontecido quando o doc foi feito, mas a sensação de “esse filme a gente já viu” vai tomar conta de todos. Enchente é uma evocação da tromba d’água que atingiu o Rio em fevereiro de 1996 e fez dezenas de mortos somente no bairro de Cidade de Deus. O trunfo maior são as gravações amadoras feitas, na noite da catástrofe e no dia seguinte, por um certo Zezinho com uma câmera VHS recém-comprada. As imagens de Zezinho têm aquela qualidade que as cenas dos telejornais dificilmente conseguem obter: os acontecimentos filmados na hora, com a pulsação viva de alguém que se sente parte daquilo. Lembram as imagens captadas por Kimberly Rivers no olho do furacão Katryna, que motivaram o doc americano Trouble the Water, de 2008.
Julio Pecly e Paulo Silva coletaram lembranças dos moradores de Cidade de Deus 15 anos depois, mostrando como o trauma de um desastre desses se enraiza na memória das vítimas. Além disso, Enchente faz uma espécie de histórico das grandes inundações cariocas desde 1954. Daí a sensação de “filme repetido”, que se ampliaria na megacatástrofe deste janeiro negro. “Quando será a próxima enchente?”, perguntava-se o letreiro final da versão que vi, ainda num corte provisório meses atrás.
Não é difícil soar profético quando se trata desse tipo de desgraça, causada por uma combinação de fúria da natureza, imprevidência do poder público e falta de consciência dos próprios cidadãos. A partilha dessas responsabilidades é um dos assuntos discutidos no filme, daí o seu caráter político. O então prefeito Cesar Maia aparece acusando os governos estadual e federal de omissão. Hoje em dia, que esse divórcio de poderes não ocorre mais no Rio, como refazer a discussão sobre responsabilidade e culpa?
Enchente será exibido na segunda-feira, às 19h30, no Cine-Tenda.
Leia sobre outros filmes da Mostra Tiradentes que eu já comentei aqui no blog:
Avenida Brasília Formosa
Copa Vidigal
Santos Dumont Pré-cineasta?
Me sinto honrado pela bela critica deste que é um dos maiores criticos de cinema do país, na minha opinião o filme nada tem de profetico e sim de descaso de seculos de nossos governantes, desde Mem de Sá que tudo continua o mesmo, penimbas politicas de um lado, comoção publica de outro, e é o povo que acaba ajudando os que perderam tudo na vida. Foi assim na Cidade de Deus em 1996, está acontecendo agora na região serrana. Quero agradecer ao meu parceiro Carlos Vinicius Borges, nosso eterno Cavi, aos apoiadores desta empreitada que durou dois anos entre filmagem e finalização, e ao meu irmão e eterno amigo de caminhada Julio Pecly, que junto comigo sai da CDD para o mundo, abraço a todos.
A arte é um terreno fértil para expressar a dor quando se perde tudo, a esperança de reconstrução, esperança que a gente tem de que isso nunca mais aconteça. Parabéns as diretores e a todos que apoiaram o filme, incluindo o Carlos Mattos com essa bela crítica. Espero assistir em breve!
Ola, Carlos Alberto,
sempre fui fã de seus criticas desde o blog antigo, fico honrado que você tenha assistido nosso doc.
foi muito dificil fazer esse filme, nao estou falando da parte tecnica e sim da parte emocional, pois eu e o Paulo fomos vitimas dessa enchente, eu perdi tudo, paulo tambem, depois que eu soube que meus amigos e parentes estavam bem, nao perdi ninguem proximo, na primeira vez que eu e Paulo conversamos, nós dois falamos que iamos fazer um filme sobre a tragédia que nos atingiu, quase quinze anos depois conseguimos fazer esse filme e numa coincidencia triste mais uma enchente com mortes, muitas mortes infelizmente e eu nunca iria imaginar que o filme se transformaria em um filme profético, ficaria bem mais feliz se isso não tivesse acontecido. Aproveitando esse espaço, vou agradecer algumas pessoas que nos ajudaram a realizar esse filme, Cavi Borges, um cara que nao tenho palavras para mostrar a generosidade desse sujeito que voce conhece bem, Luiz Erlanger da Tv Globo, Renato Martins e Leo Edde, da Urca filmes e a minha grande amiga, madrinha e quase mãe a Juiza Regina Lucia Rios, sem essas pessoas e sem o Zezinho, o Cinegrafista amador que fez a filmagem e nos cedeu por pura amizade, esse filme não teria acontecido e por ao meu Amigo, irmão, Paulo Silva que me atura há mais de trinta anos. Obrigado a todos.
Valeu, Julio. Torço para que as pessoas compreendam a dimensão do seu filme, lá em Tiradentes e por aí afora. Foi um prazer vê-lo e escrever sobre ele. Um grande abraço.
Realmente depois de todas essas imagens vistas recentemente na tv, não sei se esse filme se torna atual ou ultrapassado.
Um fato que gostaria de destacar (que infelizmente não está no filme explicitamente) é que os diretores são da Cidade de Deus e foram vítimas da enchente retratada no filme. Na época eles perderam tudo e, desiludidos e enfraquecidos, resolveram dar a volta por cima, unir forças e fazer filmes. Um momento limite de tristeza que os levou a uma coisa positiva e que mudou as suas vidas para sempre. Tê-los apresentando suas histórias nesse importante Festival é tambem um grande acontecimento politico na minha opinião. Também levando em consideração que são cadeirantes e com uma situação financeira muito precária. Na minha opinião (de produtor e amigo), exemplos de como a arte pode ser transformadora na vida das pessoas e como o cinema realmente está se tornando democrático e acessivel. Abraço a todos. Cavi.