SANTIAGO, ITÁLIA
Há um momento simples e luminoso em SANTIAGO, ITÁLIA, do tipo do qual todo documentarista deveria se orgulhar. É quando Nanni Moretti entrevista o general Eduardo Iturriaga na prisão onde se encontra há dez anos. O militar, um dos mais destacados comandantes da ditadura chilena, tenta se defender e é encurralado pelo cineasta com uma pergunta sobre perdão. Reage dizendo que só aceitou dar a entrevista porque pensava que seu interlocutor seria “imparcial”. Moretti entra no quadro junto com ele e afirma: “Eu não sou imparcial”.
Para o espectador, Moretti não precisava ser tão assertivo. Seu filme, como não poderia deixar de ser, está em clara sintonia com os militantes que lutaram contra Pinochet e se safaram da repressão refugiando-se na embaixada italiana em Santiago. Mas o gesto firme diante do “inimigo” e da câmera se fazia necessário para demarcar uma atitude nobre do documentário, que é o de tomar partido, independente de ouvir e questionar as razões do outro. Ali é como se Moretti dissesse: “Não, Sr. Iturriaga, não estou fazendo jornalismo supostamente neutro”.
A Itália não ficou neutra durante a ditadura de Pinochet. As duras lições do fascismo, ainda um tanto recentes no início dos anos 1970, contribuíram para gerar um grande movimento de solidariedade à esquerda chilena, que sofria um processo de extermínio pela Junta Militar. Na Europa Ocidental, a Itália foi o único país a não reconhecer o governo de Pinochet. A embaixada em Santiago (foto abaixo), com seu muro relativamente baixo, foi o último abrigo para os perseguidos pela DINA, a polícia política chilena.
Moretti fez um documentário despojado, que se baseia em cabeças falantes e poucos materiais de arquivo, dividido em blocos estanques. Ex-militantes, diplomatas e jornalistas relatam, sucessivamente, suas memórias sobre o encantamento do período da Unidade Popular, a conspiração da direita e da mídia contra Allende (com a comprovada participação dos EUA), o dia do golpe, as prisões e torturas, o refúgio e a vida nas dependências da embaixada, a saída de vários deles com um salvo-conduto para a Itália e a vida no exílio que acabou se transformando em sua segunda pátria.
Um dado curioso é que essa segunda vida os afastou do ativismo direto, atirando-os em circunstâncias imprevistas que mudaram seus rumos para sempre. O Chile, para alguns, tornou-se um ponto distante no mapa, quando não uma terra madrasta.
Mui italianamente, o aspecto emocional termina por se sobrepor a uma análise mais contextualizada. A gratidão dos exilados pinta um quadro róseo de uma Itália acolhedora, que lhes deu sobrevida, emprego e família. O país, contudo, pegava fogo nos chamados Anos de Chumbo, com uma sangrenta disputa armada entre a direita e a esquerda, assassinatos e ataques terroristas de parte a parte.
Moretti não insere essa Itália em seu arrazoado, pois deixa que os personagens a descrevam pelo olhar deles. Mas ao final, como um deus ex-machina, surge um derradeiro personagem para fazer um comentário sobre a Itália atual, semelhante ao que de pior teria o Chile. Soa como um porta-voz do diretor. Moretti, então, parece estar insinuando um subtítulo para seu filme: Roma, Chile.
Para mais informações sobre o filme e sobre brasileiros que se refugiaram em embaixadas estrangeiras no Chile, leia este artigo de Léa Maria Aarão Reis na Carta Maior.