Joana e o exílio interior

DESLEMBRO 

A primeira imagem de DESLEMBRO é muito forte. Joana, alterego ficcional da diretora Flavia Castro, destrói seu passaporte brasileiro e atira os pedaços na privada. Mas isso não a impedirá de retornar do exílio em Paris, onde cresceu, para o Brasil à época da Anistia. Ela volta com a família trilíngue, formada pela mãe brasileira, o padrasto chileno e os dois meio-irmãos franceses. O Brasil é uma terra estranha e opressiva, que ela aos poucos e a contragosto começará a desvendar.

Essa história, de alguma maneira, já havia sido contada no belíssimo documentário Diário de uma Busca (2010), em que Flavia remexeu o baú familiar à procura dos mistérios que cercavam a história do pai, o ativista Celso Afonso Gay de Castro, morto em circunstâncias suspeitas em 1984. Na ficção, a cronologia se altera um pouco, de modo a que a morte do pai tenha ocorrido antes de 1979.

Do início ao fim, DESLEMBRO se norteia pelas reações e o imaginário de Joana, interpretada com perfeição por Jeanne Boudier, estudante do Lycée Molière, no Rio, e estreante no cinema. A rejeição à ideia de voltar ao Brasil, as pequenas descobertas posteriores (como a natureza tropical na Floresta da Tijuca e o sabor da jabuticaba), as lembranças esgarçadas do pai na primeira infância e sobretudo a inquietação quanto ao paradeiro dele – tudo isso vai se mesclar a suas experiências mais concretas: a descoberta do amor e dos baseados, a relação carinhosa com o irmão mais novo, a cumplicidade com a avó paterna (Eliane Giardini), o amor pelo rock.

A realidade objetiva foge com frequência, dando lugar aos flashes de memória e de percepção de Joana. Nesse balanço entre o tangível e o volátil, tem papel decisivo a fotografia de Heloísa Passos. Alternam-se as filmagens com a câmera na mão e muito próxima de Joana e as tomadas mais estáveis e distanciadas, como se um espaço fosse sendo progressivamente aberto para a menina encontrar sua identidade e seu caminho.

Joana foi alimentada no sigilo da clandestinidade e no deslocamento do exílio. A confusão de sentimentos não é minorada pelas evasivas da mãe (Sara Antunes), que só faz adensar o enigma em torno do pai desaparecido. O padrasto é outra ausência contumaz, envolvido que é com as ações do Movimiento de Izquierda Revolucionaria chileno. A Joana resta conduzir sua investigação e escrever sua história num caderno, um pouco como Flavia faria mais tarde com Diário de uma Busca.

O contexto é, portanto, autobiográfico, embora não os detalhes da história. Joana, como se verá numa das últimas sequências, é refém de um “se” que acompanhou a diretora durante toda a infância. Mas o que Flavia queria era “falar antes de tudo da relação de uma adolescente com a sua própria memória.”

DESLEMBRO (título extraído de um poema de Fernando Pessoa) combina com maestria exposição e introspecção, o prosaico com o profundamente dolorido, a disponibilidade inocente de Joana com a gravidade de um momento histórico. Sem deixar de ser um filme agudo, foi feito com grande sutileza e extrema delicadeza. Poucas vezes se viu no cinema brasileiro uma direção de crianças tão eficaz e natural, virtude que se estende a todo o elenco.

O uso diegético da música – isto é, como parte integrante da cena – pontua com inteligência a travessia de Joana por uma paisagem existencial que ela custa a entender que também lhe diz respeito. Sua aventura íntima a leva a despedir-se do exílio interior. Joana passa da rejeição à compreensão de maneira quase imperceptível, ou seja, como só as histórias bem contadas sabem fazer.

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