De pai para filho

O drama peruano Retablo e o documentário brasileiro Cinema São Paulo retratam personagens que amam e herdam a atividade de seus pais.

Por trás da superfície

Os retábulos se caracterizam pela frontalidade. Na tradição do Peru, são esculturas retratando temas religiosos, históricos, festivos, da vida cotidiana ou até retratos de família. Ficam geralmente protegidas dentro de um pequeno armário, como um oratório. Todas as figuras estão sempre dispostas lado a lado, de maneira tal que, ao olharmos um retábulo, tudo se mostra de pronto, de frente. Esse formato é o que está em xeque no belo filme peruano Retablo, de Alvaro Delgado Aparicio.

Tudo parece claro e estabelecido na história do mestre Noé (Amiel Cayo), respeitado artesão de retábulos cujo trabalho é objeto da extrema admiração do filho Segundo (Junior Bejar). No Peru, vale lembrar, esse é um ofício usualmente transmitido de pai para filho. Mas eis que Segundo descobre um segredo do pai, assim como se encontrasse algo escondido por trás da superfície do retábulo. A revelação abala o garoto sensível e o coloca em choque com a cultura machista, homofóbica e violenta do lugar onde mora, a região de Ayacucho, nos Andes peruanos.

Falado em quechua, Retablo é uma história de decepção, desorientação e, afinal, compaixão. Carrega subtextos que podem ser explorados pelo espectador, especialmente em relação aos dois personagens centrais. O fato de ter sido premiado em várias competições LGBTQ (inclusive no Festival de Berlim) está longe de limitar seu tema, que se expande para as dicotomias tradição-transgressão e rejeição-compreensão.

A estética do filme cita os retábulos em várias instâncias: há sempre duas portas que se abrem sobre um grupo de pessoas, uma cena montada, uma paisagem. A câmera, quase sempre fixa em composições requintadas, reproduz a frontalidade daquela arte e às vezes salta para o contracampo ou revela-se como um olhar subjetivo. A sobriedade e a elegância do estilo são admiráveis. Cabe destacar, ainda, a atuação brilhante de Magaly Solier no papel da mãe. Ela é a grande dama do cinema peruano, que estrelou Madeinusa, A Teta Assustada e A Passageira.



Cinema de um homem só

No princípio, o documentário Cine São Paulo parece contentar-se com uma nostalgia um tanto ingênua, a propósito de uma vetusta sala de cinema desativada na cidade paulista de Dois Córregos e da memória de filmes antigos ali exibidos. O Cine São Paulo, inaugurado em 1911 – portanto um dos mais antigos do país –, teve várias mortes e ressurreições. Francisco Teles, o autal proprietário, herdou-o do pai e, depois de vários anos de deterioração, resolveu reformá-lo por conta própria e trazê-lo de volta à atividade.

Os diretores do filme, Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli, acompanharam a difícil missão, desde a recuperação da rede elétrica à procura de doação de novos equipamentos e aos retoques finais para a reinauguração. Aos poucos, nossa atenção e simpatia vão sendo conquistadas pela determinação e a singeleza do “Seu Chico”, às voltas com as despesas e as exigências da empreitada.

O filme é pontuado pela lida de “Seu Chico” com uma porta pantográfica emperrada, que acaba sendo a metáfora da sua obstinação. Uma leve dramaturgia vai se construindo, à medida que conhecemos a indiferença e mesmo a oposição da mulher ao sonho dele, o suspense com a aprovação dos bombeiros à reabertura do cinema, um atrito com os realizadores do documentáio e a divertida relação do personagem com as questões técnicas – o que nos deixa ansiosos até o momento decisivo de ligar o projetor na noite de inauguração.

Em sua simplicidade de registro, Cine São Paulo se ergue como uma declaração de amor aos cinemas de rua e ao espírito empreendedor do jeito de antigamente.

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