Um julgamento kafkiano

É Tudo Verdade: O PROCESSO – PRAGA 1952

por Paulo Lima

Rudolf Slánský, segundo à esquerda na primeira fila

Se existisse de fato uma lei que determinasse as ironias da história, ela deveria recair sobre Rudolf Slánský, acusado em 1952 de conspiração contra o regime comunista da antiga Tchecoslováquia. Ele era ex-secretário geral do Partido Comunista tcheco quando caiu em desgraça e sofreu na pele os métodos que incentivou contra os chamados inimigos do povo. O feitiço virou contra o feiticeiro.

Principal acusado de um grupo de 14 conspiradores, Slánský foi torturado e julgado por um tribunal que, na prática, encenava uma farsa, um teatro típico do terror stalinista. Entre os condenados estavam Rudolf Margolius, economista e ex-ministro substituto do Comércio, e Artur London, revolucionário profissional que havia lutado na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa.

O drama dos três homens constitui o documentário O Processo – Praga 1952 (Le Procès – Prague 1952), dirigido pela francesa Ruth Zylberman, que se valeu de uma peça de propaganda sobre o julgamento de 1952 encontrada por acaso em 2018 por trabalhadores. Os rolos de filme estavam escondidos desde a queda do Muro de Berlim.

Os arquivos restaurados mostram cenas das sessões do processo que condenou Rudolf Slánský e Rudolf Margolius à morte e Artur Lindon à prisão perpétua. Que toda a mise-en-scène stalinista tenha ocorrido em Praga, cidade de Kafka, é só mais uma ironia histórica, toda ela revestida do absurdo de um processo kafkiano.

A qualidade técnica do material é excepcional e remete ao objeto de outro documentário famoso, O Processo, do ucraniano Sergei Loznitsa, que mostra o julgamento de um grupo de economistas e engenheiros do alto escalão soviético, em 1930, em Moscou, acusados de traição. Porém, enquanto Loznitsa opera tão-somente com imagens de arquivo, Ruth Zylberman faz uma combinação de dispositivos. Os filmes do processo de 1952 são mesclados com outras fontes, como os testemunhos dos filhos de Rudolf Slánský, Rudolf Margolius e Artur London, e a narrativa da própria diretora.

A partir dessa estrutura híbrida, Ruth Zylberman reconstrói o contexto histórico do julgamento de fachada e a atmosfera de “um mundo onde as mentiras tinham se tornado lei”. Ou seja, o mundo de Stálin e sua perseguição implacável a quem quer que fosse apontado como inimigo da causa dos trabalhadores. Slánský foi um dos mentores da repressão tcheca, tendo inclusive militado para que a democracia em seu país ruísse, cedendo lugar a uma ditadura do proletariado, da qual a Tchecoslováquia era um mero satélite da União Soviética.

O imbróglio em torno da conspiração que envolveu Rudolf Slánský e os demais acusados tem os elementos de uma trama romanesca de espionagem dos tempos da Guerra Fria. A história efetivamente se transformou no filme A Confissão, dirigido por Costa-Gavras e baseado no livro homônimo escrito por Artur London.

As denúncias dos crimes de Stálin feitas por Nikita Kruschov após a morte do ditador levaram à absolvição, embora secretamente, dos acusados e à libertação de Artur London. Mais uma página sangrenta do stalinismo, contudo, já havia sido escrita.

Paulo Lima

Exibição:
07/04 – 17h: online – É Tudo Verdade Play – Limite de 1500 visionamentos.

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